Ao menos três vezes por dia ela atravessava seu
jardim até a caixa de correios colada ao muro. Abria-o. Certificava-se do
vazio. Voltava a seus poucos afazeres.
Como num ritual, ontem ela fez o mesmo. Olhou.
Vazio. Voltou.
Anteontem, idem. Mas anteontem era domingo. Qual a
possibilidade de alguém depositar algo em sua caixa de correios em um dia de
domingo? Nada. Não havia nada. “Com o advento da internet, as pessoas tornaram-se insensíveis!”,
pensou.
Às vezes era acometida por um saudosismo tão brutal
do tempo das cartas, que sua visita à caixinha desgastada pelo tempo, colada ao
velho muro, passava de três vezes por dia. Em alguns raros dias era tomada por
uma espécie de melancolia, então ia até a caixa uma vez só. Esses dias eram
aqueles nos quais ela se permitia vinte e quatro horas de racionalidade.
Vez ou outra, abria lentamente a tampa da caixinha
e visualizava uma ponta branca de papel. Não a abria toda. Corria à cozinha,
colocava um champagne no gelo e rumava para a caixinha dos desejos. Ela sabia
sentir o momento. Abria lentamente a tampa, como quem abre seu alvará de
soltura. Tomava posse do envelope com todo cuidado, levava-o para dentro e o
depositava sobre a mesa. Sentava-se, estourava o champagne, enchia o copo e
degustava o líquido gasoso, com os olhos grudados no envelope. Ela sabia da
falta de importância naquilo. Ou era uma conta, ou propaganda dos insistentes
comércios de sempre. Tinha ciência de que o conteúdo não a agradaria. Mas era
um envelope. Necessitava de todo ritual merecido por ter adentrado sua caixa
de cartas.
A vazia vida se resumia à caixa. Não conhecia
nenhum entregador dos correios, entretanto, admirava-os. Eram dignos do respeito dela.
Aposentada, inútil para o mundo, esquecida pelos
poucos familiares que lhe restavam, guardava-se em sua insignificância. Não
saía. Telefonava para o supermercado do bairro solicitando o necessário.
Recebia tudo em casa. Renunciou a todo contato humano.
Hoje ela foi duas vezes à caixa, e ainda são dez
horas da manhã. Ela não sabe, mas quando for novamente, encontrará em sua caixa
de pandora um envelope pardo sem remetente. E até que consiga abri-lo, talvez
já seja noite, tão feliz ficará ao se deparar com seu nome escrito à tinta
vermelha, cor de sangue. Certamente tomará o champagne inteiro olhando para o
envelope, não só um copo. Observará a palavra “urgente” escrita no lado do
destinatário bem abaixo de seu endereço, e aguardará muito até não suportar
mais a ânsia de ler seu conteúdo. Pegará a espátula, e cuidadosamente trará à
luz aquela folha branca com poucas palavras. Notará que nela está escrita, à
mão, parte do poema de Mário de Sá-Carneiro: “Eu não sou eu/ nem sou o outro./
Sou qualquer coisa de intermédio [...]”. Refletirá sobre essas palavras tão
misteriosas e as sentirá lendo em voz alta. Lerá de novo e de novo. “Que
lindo!” - pensará. Mas sua tez irá se franzir quando depois de tantos minutos
parada nestes versos, perceber que há algo mais, escrito bem embaixo na folha,
com letras minúsculas, quase imperceptíveis. São de cor cinza. Ela pegará a
lupa, pois os óculos não abarcarão as palavras de forma inteligível. E lerá com
um misto de aflição e alívio: “Este é seu último dia. Só irá à sua caixa de
pandora até a meia-noite de hoje. Aproveite!”
À meia-noite e um minuto estarei lá para dar cabo
de sua vacuidade, uma vida desgastada e infeliz.