quarta-feira, 30 de abril de 2014

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"Nossa natureza está em movimento: o pleno repouso é morte." PASCAL

terça-feira, 29 de abril de 2014

BATALHA

Escrevo para não vomitar. Deleito a tinta fresca sobre este papel nu de cores para não pular da sacada da qual Ana C. voou. Escrevo ainda mais para não pensar. Desenho letras para mostrar a mim que vivo. Entretanto, pairo agora sobre um ponto de negra tinta da caneta vagabunda que mais gosto de usar. O que me atrai não tem luxo. O artífice da vida me causa náuseas. Não quero dar ordem ao caos com minha escrita. Não há ordem. Eu posso devanear sobre qualquer matéria sólida que surgir, mas não. Estou morto dos desejos de ser criador. Eu me quero criatura. Portanto, este papel ordinário não passará de uma bola amassada no cesto em segundos, embora me convide a discursar sobre ele. Quer ser possuído. Mas não lhe satisfarei o desejo. Não mais viverei com a retina deslocada da realidade. Preciso ver. Por isso, calo.

QUIXOTE

Hoje ele está sentado à porta da biblioteca. Pose de Drummond no banco em Copacabana. Entretanto não tem o mar às costas. Tem quimeras. Está todo dia por aqui. Conversa com centenas de seres invisíveis, e quando se dirige a mim, pergunto-me se também estou. Fala descompassadamente e, em geral, não entendo nada. Uma voz forte de quem já discursou deveras. Outros caminhantes passam a seu lado. Ninguém o vê. Não recebe respostas, sequer olhares. Ares de intelectual maltrapilho, carrega sempre uma bolsa com a escrita orgulhosa: Doutorado. Mas hoje não. Apareceu com dois livros nas mãos apenas. Sem bolsa.  Nada de relevância. Conversando e fumando, como de hábito, traz um olhar perdido de quem já viveu demais, conheceu demais e que ainda assim não obtém respostas de nada. Certamente está cercado de armadilhas da própria mente. Dom Quixote pós-moderno.

Resto

O que da vida me restou:
pegadas alheias sob meus pés molhados.
Mia Couto



Máscaras e nomes

"Enquanto estamos vivos, não podemos escapar de máscaras e nomes. Somos inseparáveis de nossas ficções – nossas feições". Octavio Paz

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Fragmentos

No início ela vinha todo ano. Chegava como quem ficara distante tempo demais e que os poucos dias que nos proporcionava o prazer de sua presença não seriam suficientes para receber o perdão pela ausência. Era toda solícita, agradável, complacente, dizia sempre sim. Em um ano ela não veio. Estranhamos. Ela deve voltar no próximo. Entretanto, com o passar do tempo, sua vindas ralearam. A tristeza nos assolou, mas ela sempre respondia que não poderia vir naquele ano, pois havia viajado para outras paragens. E no outro ano. E no ano subsequente. Ela não voltava. Mas sabíamos que voara outros ares, navegara outros rios, surfara outras ondas, escalara outras montanhas, conhecera novos mundos. Ela não voltava. Solicitávamos sua presença. “Você não pensa em nós?” Ela pensava: “Já pensei demais.” Mais alguns anos e ela não voltava. “Estará sofrendo de misantropia?” Não. Ela não estava. Se assim fosse, não iria para outros lugares. Que mal fizemos? Não nos amava mais? Então depois de anos a fio numa espera milenar ela chegou. Abrimos os braços. Ela não. Não tinha os braços. Lançou-nos um olhar ensimesmado. Não falou sim. Não tinha boca. Não falou nada. Mas os olhos desenhados num não. Seria ela? Duvidamos. Ela não se mexeu. Os anos passaram e parecia tão diferente do que era, sobretudo distante, como estivera de fato. Falamos a sua volta, rimos como nos velhos tempos. Ela não falou. Não riu. Não quis sair. Ficamos. Ela não quis comer. Comemos. Ela pôs sua desgastada mochila nas costas com ares de despedida. Sem expressão de alegria, nem tristeza. Sem escárnio, mas sem sentimentalidades. Virou-se. Vimos sua partida calada como estivera o tempo todo. Quando adentramos a casa, havia uma carta sobre a mesa. Todos queriam lê-la. Talvez ali estivesse alguma explicação. Um puxou de um lado, outro e outro de outro e a carta rasgou-se. No chão, o papel tão fragmentado como ela mesma se apresentou a nós. Entre os milhares de pedaços no chão, todos brancos, apenas uma frase com letra muito miúda num pedaço mínimo do papel: “Conheço-me as fronteiras. Quero o resto.”

POEMA DESERTO

Eu me anulo me suicido,
percorro longas distâncias inalteradas,
te evito te executo
a cada momento e em cada esquina.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Confiança

"Não se pode confiar nos homens. Nas máquinas, sim. Mas os homens mudam de ideia e de comportamento. Um dia estão de um jeito, no outro, de outro. Fazem novas alianças.[...] Mudam de campo. Oscilam. Podem ser convencidos a mudar de opinião. Um simples fato pode fazê-los mudar..." 
Bernardo Carvalho (TEATRO)

Mentira

"[...] o problema da mentira é que você não sabe mais o que é verdade e o que não é. O problema é menos a mentira em si do que seu poder de contaminação, porque ela desestrutura todas as verdades, faz você perder o rumo e não saber mais o que está fazendo." 
Bernardo Carvalho (Livro: TEATRO)

Crenças

Aos que defendem os deuses, aos que os desprezam, aos que acreditam numa força suprema, aos que creem no vazio divino, resta-lhes de alguma maneira a crença, em maior ou menor quantidade. E uma (des) crença desmedida pode, não raro, tornar-se muito maior do que qualquer abstracionismo de deus. Todo fanatismo é uma espécie de loucura. 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Matéria

O que pode sentir "uma criatura entre tantas criaturas" que é uma espécie de matéria amorfa, habitada pelo vazio e conformada com a nulidade que a vida lhe impôs? "Inspira, expira. Inspira, expira." Vive, mas está morta. Acostumada à lama que o destino lhe concedeu. Macabéa da vida real. 

Estrangeiras

Que prazer pode haver em um reencontro improvável com alguém que se cruzou apenas uma única vez, numa cidade imensa e vazia de humanidades? Provavelmente porque neste único encontro ocorrido, tenha sido gentil, prestado um favor a quem sentia-se só na multidão. O de ajudar-me a me encontrar, se é que há possibilidade de que algum ser humano consiga a peripécia de encontrar-se. “Por favor, este ônibus vai para o meu destino?” A pergunta foi feita a um rapaz que não sabia a resposta. Ela prontificou-se: “Vai sim, irei para lá também. Vamos.” Leve sotaque. Sorriu um sorriso estrangeiro, sem parcimônia. Quando chegamos ao nosso local de parada, apresentou-se a mim: “Sou colombiana, me chamo Adriana, ficarei apenas seis meses aqui, estudando.” Caminhamos conversando até o local preterido. Despedimo-nos desejando-nos boa sorte. Precisaríamos mesmo. Duas estrangeiras numa terra de todos e de ninguém. Hoje nos revimos. Sabíamos ainda nossos nomes. Trocamos meia dúzia de palavras cochichadas entre as estantes carregadas de conhecimento. Externo a nós que percorremos o árduo caminho de conhecer e conhecermo-nos a nós mesmas. Quando passou por mim novamente para sair, veio até minha mesa, sorriu, agora não mais um sorriso tão estrangeiro, mas de quem já quase encontrou seu ninho, como eu. Falou um “tchau, tchau” balbuciado de quem talvez quisesse falar mais um pouco. Foi-se. Ela partiu com sua menos estrangeiridade e deixou-me cá a elucubrar sobre o fato de que quando pensamos ter encontrado nosso lugar, este lugar não é nosso. Não existe um canto de nosso neste vasto mundo. Em todo sítio nos sentimos estrangeiros, até mesmo dentro de nosso interior povoado de clandestinidade...

quinta-feira, 24 de abril de 2014

INTERROMPIDA

Silêncio mortal na biblioteca. O máximo que se ouve é o ruído rápido de canetas postas na mesa, uma página ou outra que vira e raros espirros abafados. Nem passos, nem sussurros, nem arrastar de cadeiras, nem a nona sinfonia de Beethoven. No banheiro, só o som das torneiras, das urinas, das descargas. Quando saio de um dos compartimentos do banheiro, ela está lá se olhando no espelho. Com um belo rosto angelical, sorri para mim pelo reflexo. Não sei se me vê. Olhar apagado no rosto de anjo, continua a observar-me pelo espelho e sorri novamente quando nossos olhos se encontram, enquanto lavo as mãos.“Você acredita que algumas pessoas vieram aqui para cumprir uma missão?” Assusto-me com o diálogo sussurrado que ela inicia. “Talvez. Não sei. Talvez.” Faço menção de sair. “Leu O Duplo, de Dostoiévski?”. Balanço a cabeça num sim. Teria feito isso mesmo se não o tivesse lido. Poderia querer me contar o livro todo. Uma estranha contando-me o que já conheço. “Acha possível que exista o nosso duplo, o doppelganger?” Balanço a cabeça insinuando um não. “Pois há. Eu tenho um. Desconcertante isso. Sou perseguida o tempo todo.” Tenciono sair novamente. Na pia um líquido vermelho escorre. Fujo de olhar para aquilo, amedrontada. Pelo espelho ela me olha pela última vez. Os olhos mais mortos agora. Mostra-me os braços com os profundos cortes e antes de escorar na parede espalhando o sangue pelo chão, me diz, agora mais baixo ainda, num som quase inaudível: “Eu preciso fazer isso porque ela queria que eu fizesse com todos os que estão aí dentro.” Senta-se no chão. A cabeça cai para o lado. Então percebo em sua cintura o metal pesado que carregava para cumprir a missão interrompida por um estilete.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O duplo

“Venceste e eu pereço. Mas daqui para frente também tu estarás  morto. Morreste para o mundo, para o céu e para a esperança! Existias em mim. Olha bem agora para a minha morte, e nessa imagem, que é a tua, verás o teu próprio suicídio!” Edgar Allan Poe (William Wilson)

terça-feira, 22 de abril de 2014

Paranoico

"[...] o paranoico não pode suportar a ideia de um mundo sem sentido. É uma crença que ele precisa alimentar com ações quase sempre militantes, para mantê-la de pé, tal é a força com que o mundo o contraria. O paranoico é aquele que procura um sentido e, não o achando, cria o seu próprio, torna-se o autor do mundo." Bernardo Carvalho (Do livro: Teatro)

Acostumar-se...

"Nós nos acostumamos depressa demais 
com o extraordinário." 
Bernardo Carvalho 
(Nove Noites)

Segredo da velhice

"O segredo de uma boa velhice 
não é outra coisa 
além de um pacto honrado 
com a solidão." 
Gabriel García Márquez 


terça-feira, 15 de abril de 2014

Doce consolação...

"Mas, na admissibilidade irrestrita do perdão para os que o desejarem, está implícita a certeza de que os seres humanos tanto podem cometer quanto padecer os atos mais terríveis. E, no cristianismo, há a crença consoladora em um Deus que se fez homem para submeter-se aos piores horrores da condição. A eterna tensão entre o bem e o mal implica necessariamente a existência dos dois. Se existir um princípio supremo, seja como for, a força selvagem da sexualidade e do desejo será da natureza da criação."
Do livro: O MONSTRO (Conto de SÉRGIO SANT´ANNA, p.79). 
Para a consolação humana, existe o perdão divino que não segrega homem algum, nem pela natureza de crimes cometidos, nem por quaisquer passos em falso que se tenha dado antes do arrependimento. "O cristianismo, ao pressupor a existência do bem e do mal, ao conceber a figura radical do perdão, naturalizaria qualquer gesto repugnante praticado pelo homem".

LITERATURA

"A literatura não traz a realidade para o texto, ela é encenação, apropriação de imagens e, nesse sentido, é, também, um exercício de poder, como qualquer outro.[...] A palavra é uma moeda cujo valor é definido pelo lugar social daquele que fala. Quem dispõe da autoridade do discurso tem a posse de um instrumento de dominação e não de libertação.Vera Lúcia Follain de Figueiredo

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Epitáfio - Bertold Brecht

Escapei aos tigres
Nutri os percevejos
Fui devorado
Pela mediocridade

No livro de Haroldo de Campos
(O arco-íris branco)

sexta-feira, 11 de abril de 2014

RACIONAL E SELVAGEM

"que o ser humano é um animal
radicalmente racional e no entanto selvagem,
por mais que se defenda
de uma coisa ou de outra."
A Carta (Sérgio Sant'Anna)
"E que só ele é capaz de penetrar
águas desconhecidas 
obedecendo a um instinto
que é mais da mente que do corpo."

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Dois punhais - Real e imaginário

"[...] Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas...[...]" Machado de Assis em "O Punhal de Martinha" (de 2 de junho de 1878)
Lucrécia matou-se com um punhal? 
Martinha sim, matou com um punhal.
Suicídio e homicídio - questão de prefixos.
E os punhais...?

"[...]Com tudo isso, arrojo de ação, defesa própria, simplicidade de palavra, Martinha não verá o seu punhal no mesmo feixe de armas que os tempos resguardam da ferrugem. O punhal de Carlota Corday, o de Ravaillac, o de Booth, todos esses e ainda outros farão cortejo ao punhal de Lucrécia, luzidos e prontos para a tribuna, para a dissertação, para a palestra. O de Martinha irá rio abaixo do esquecimento, Tais são as cousas deste mundo! Tal é a desigualdade dos destinos!

Se, ao menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma, nem tal ação, nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda, que a história meteu nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, não logrará ocupar um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura ficção.[...]" Machado de Assis

TELEPATIA DAS LETRAS

É um homem grande, no sentido literal da palavra. Com aparência agradável. Alto, forte, longos cabelos grisalhos revolução hippie, meia idade, possivelmente mais que meia idade. Homem das palavras. Sem palavras. Sem nome. Simpático, cumprimenta com leve meneio de cabeça os funcionários que cruzam o espaço que ocupa. Toma o mesmo lugar a uma mesa na biblioteca todos os dias. Com grossos livros e jornais, inicia seu dia lendo os últimos. Leituras muitas. Política, economia, notícias de tragédias comuns. Lê. Depois, como uma espécie de tradição, debruça-se sobre os livros que lhe servem de apoio, e fica nesta posição por tempo indeterminado. Talvez esteja deglutindo as informações todas que leu. Ou estaria ele, de uma forma telepática, inserindo o conteúdo dos livros em seu cérebro? Poderiam as palavras dos grossos livros se teletransportar para ele? Quando acordar, perguntarei o que ocorre quando se deita sobre a pilha de letras e palavras e frases e parágrafos e conhecimento. Dependendo de sua resposta, seguirei seu exemplo. Dormirei sobre os livros. Quiçá possa assim sair da exiguidade intelectual dos pequenos cérebros, com menos desespero. 
Amém!

quarta-feira, 9 de abril de 2014

LEITE DERRAMADO

"Se soubesse como gosto das suas cheganças, 
você chegaria correndo todo dia." 
Chico Buarque 
(Narrador-personagem Eulálio, em Leite Derramado)

Ah, essas memórias....
Sugiro leitura. Maravilhoso!!!

terça-feira, 8 de abril de 2014

Pensamentos

"[...] o caminho do sono
 é como um corredor
cheio de pensamentos." 
Chico Buarque 
(Leite Derramado)


Mas um longo corredor sem porta de saída.
Pensamentos...
Vão e vêm sem serem chamados
tornando-nos seres anódinos insones.
Como dizia o poeta:
"Acostuma-te à lama que te espera."

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Sonhemos, pois...


— Dói-te alguma coisa?
— Dói-me a vida, doutor.
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Mia Couto

Torpor

Passos largos. Movimento contínuo.
O vento carrega todo aroma que encontra.
Corpos vencidos pelo dia pesado de trabalho árduo.
Cheiro de gente, de rua, de rio, de labuta.
Aroma de insatisfação nos narizes cansados. 
Num ímpeto, um cheiro adocicado.
O caminhante à frente sopra no ar 
o resquício de seu passaporte de viagem.
Passos curtos. Movimento diminuto.
Quem vem atrás aspira o cheiro doce baforado.
Odor breve, leve, tal qual quem o deixou.



Máquinas

Arranha-céus se erguem sob o sol.
Tempo aberto para quem tem o privilégio da cobertura.
Automóveis brigam por um espaço. Buzinas. Faróis. Máquinas.
Androides comuns perambulantes nas ruas. Mercadoria sem rosto.
Pare. Aguarde. Siga.
Carros. Corpos. Barulho. 
Sinal fechado para o ser humano.
Abre-se somente o farol para as massas transeuntes.
Sem calma, sem alma, sem identidade.
Gente apenas. Nada de mais.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Não pertença

"Só me pertence o que não abraço. 
Eis como eterno me condeno:Amo o que não tem despedida."

(Mia Couto)

Vida

"A vida é uma doença
(de nascença)"

"Quando morrer quero ser um livro."

Joca Reiners Terron
(Eletroencefalodrama)