sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Máscaras

"E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro a minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara."
Clarice Lispector 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Verdades

"A verdade não pode ser senão violenta.
Não há verdade apaziguadora." 


JOCA REINERS TERRON      (Não Há Nada Lá)


















Ainda assim, prefiro a verdade violenta à mentira que conforta.
O conforto da ilusão pode custar-nos caro, não raro.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Apanhar sonhos

Frondosa e alta é a árvore de onde
Escorrem sonhos em folhas
Pétalas, raízes, frutos.

Necessário se faz subir,
Puxar com cuidado o que deseja
E descer calmamente 
Para que não escorra pelos dedos
Os sonhos em formas tantas que apanhastes.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Pote dos sonhos

O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre.


ADÉLIA PRADO

Sementes

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio, 
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

ADÉLIA PRADO

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sem danos

A desgraçada desesperança chega
Invade a penumbra do quarto
Sorrateiramente enfia-se sob meus lençóis
Me toca, insinua-se, sorri
E fazemos amor sem compromisso.

No outro dia resta apenas um bilhete:
"Volto quando quiser."


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Nocturnamente

Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo

Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio

Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces

MIA COUTO


Poema da Despedida

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
 os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
 nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo

MIA COUTO


Anonimato

Dos versos que escrevi
Metade era de alguém
A outra metade também.

Farrapos

E de tanto caminhar me desvencilhando de mim
Encontro meus farrapos no chão
Visão dos desesperados
Medo súbito
Arfar incessante
Impotência dos loucos
Prisão da fênix.
Não há nada que vá nascer das cinzas
Saídas dos farrapos de mim
Despejados no chão.

Pisoteio e continuo a caminhar

Fantasma perambulante
Sem roupa, sem sonhos, sem deuses, sem alma...



domingo, 9 de fevereiro de 2014

Vida/Tempo - Viviane Mosé

A maioria das doenças que as pessoas têm
São poemas presos
Abcessos, tumores, nódulos, pedras
São palavras calcificadas, poemas sem vazão
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado
Poderia um dia ter sido poema, mas não 

Pessoas adoecem da razão
De gostar de palavra presa
Palavra boa é palavra líquida
Escorrendo em estado de lágrima

Lágrima é dor derretida
Dor endurecida é tumor
Lágrima é raiva derretida
Raiva endurecida é tumor
Lágrima é alegria derretida
Alegria endurecida é tumor
Lágrima é pessoa derretida
Pessoa endurecida é tumor
Tempo endurecido é tumor
Tempo derretido é poema

VIVIANE MOSÉ
(Do livro Pensamento Chão)
Derretamos, pois, em lágrimas e poemas que levam as durezas...

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda

o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer


Mia Couto


terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O AMOR, MEU AMOR

Nosso amor é impuro 

como impura é a luz e a água 
e tudo quanto nasce 
e vive além do tempo. 

Minhas pernas são água, 
as tuas são luz 
e dão a volta ao universo 
quando se enlaçam 
até se tornarem deserto e escuro. 
E eu sofro de te abraçar 
depois de te abraçar para não sofrer. 

E toco-te 
para deixares de ter corpo 
e o meu corpo nasce 
quando se extingue no teu. 

E respiro em ti 
para me sufocar 
e espreito em tua claridade 
para me cegar, 
meu Sol vertido em Lua, 
minha noite alvorecida.


Tu me bebes 

e eu me converto na tua sede. 
Meus lábios mordem, 
meus dentes beijam, 
minha pele te veste 
e ficas ainda mais despida. 

Pudesse eu ser tu 
E em tua saudade ser a minha própria espera. 

Mas eu deito-me em teu leito 
Quando apenas queria dormir em ti. 

E sonho-te 
Quando ansiava ser um sonho teu. 

E levito, voo de semente, 
para em mim mesmo te plantar 
menos que flor: simples perfume, 
lembrança de pétala sem chão onde tombar. 

Teus olhos inundando os meus 
e a minha vida, já sem leito, 
vai galgando margens 
até tudo ser mar. 
Esse mar que só há depois do mar. 

Mia Couto 
No livro "Idades cidades divindades"