sábado, 31 de maio de 2014

SENTIR

"Por que será que a gente, mesmo sabendo que é ilusão, na hora de sentir sente de verdade? Será apenas catarse? Ou será uma necessidade muito forte e muito profunda, de viver algo especial? A necessidade dos grandes sentimentos, amor, ódio, honra, bravura."
Carola Saavedra (Paisagem com Dromedário)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

BOM TOM


Morando confortavelmente por uma temporada no apartamento de uma tia amada.
Sozinha. Telefone fixo toca. Não acho de bom tom não atendê-lo.
- Oi.
- Boa tarde! – uma voz suave do outro lado – Posso falar um minutinho com a senhora?
- Olha, eu sou apenas funcionária aqui.
- Não tem problema. É rápido. Eu sou da Instituição de Caridade X e quero falar de deus para a senhora.
- Não quero ouvir, obrigada.
- Mas vou falar da promessa de deus pra senhora.
- Moça, detesto promessas que envolvam terceiros. Se vai me prometer algo, prometa-me você. Nada de envolver quem não pode. – fui perdendo a paciência. Seminua porque estava quase entrando no banho. Muito frio. O corpo foi gelando aos poucos. Mas ela insistiu:
- Vou só ler uma promessa de deus para a senhora.
- Moça, não vou ouvir. Desculpe-me. Não vou. – pensei em desligar o telefone, seria de bom tom? Não deu tempo.
- Então posso deixar com a senhora a página para que leia depois? É da bíblia!
- Senhora, não lerei. Perdão. Vou desligar.
Ouvi um riso sem graça do outro lado.
- Não gosta de ler?
- Não!!! – Foi a mentira pequena que mais doeu em mim. Doeu tanto que queimou minha pele. Nem frio sentia mais. Agora eu poderia ficar no frio de talvez 11 graus, me sentar e debater longamente com ela. “Melhor não”, pensei. “E o bom tom?”
- Mas deus é muito importante...
- Não. Não quero, moça. Já tenho religião.
- Ah, então, senhora... Mas a promessa de deus é... De que religião a senhora é?
- Minha religião é a literatura, e me proíbe de ouvir promessas, portanto vou desligar educadamente e você também vai me deixar em paz, por favor.
Click do telefone dela. Tu...tu...tu... Desligou antes de mim. Que falta de bom tom. A mim coube esperá-la fazer isso. Não é de bom tom ser mal educada ao telefone dos outros. Se eu estivesse em minha casa, minha religião não teria me permitido sequer atender. Mas aqui não é de bom tom. Amém.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

ESCRITA NENHUMA

Nada
Terra
Semente
Água
Árvore
Celulose
Papel
Escrita nenhuma.

Escrita nenhuma
Papel
Celulose
Árvore
Água
Semente
Terra
Nada.

APRENDIZAGEM...

Nunca fui como todos
Nunca tive muitos amigos
Nunca fui favorita
Nunca fui o que meus pais queriam
Nunca tive alguém que amasse
Mas tive somente a mim
A minha absoluta verdade
Meu verdadeiro pensamento
O meu conforto nas horas de sofrimento
não vivo sozinha porque gosto
e sim porque aprendi a ser só...


Florbela Espanca



terça-feira, 20 de maio de 2014

JOCA TERRON

"quem não

que o hálito de
vênus
esconde mil
venenos?"

(ELETROENCEFALODRAMA)

CANTARES XVIII - HILDA HILST

Para tua fome

Eu teria colocado meu coração
Entre os ciprestes e o cedro

E tu o encontrarias
Na tua ronda de luta e incoesão:
A ronda que persegues.

Para tua sede
As nascentes da infância
Um molhado de fadas e sorvetes.

Eu abriria em mim mesma
Uma nova ferida

Para tua vida.

Angústia

"Uma luva de angústia me afaga o pescoço..." 
Ana C.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

PAPO DE CALOURAS

 No guardador de mochilas à porta da biblioteca, duas garotas à minha frente. Novas amizades. Novas garotas. Um mundo todo pela frente. 
_ Tipo, acho você tão original.
_ Sério? Tipo o quê?
_ Tipo... Sei lá. Você é muito original.
_ Tipo... Não acho. – ares de modéstia – Não sei por que você acha.
_ Ah, tipo... Suas fotos no face, no what... Muuuito original.
_ Aaah, para. – risinhos – Tipo... não acho...
_ Tipo... Você vai se maquiar amanhã para sair?
_ Não.
_ Tá vendo? Tipo... É isso. Muito original. – Pegaram suas mochilas na recepção e se foram com seu prazeroso diálogo.
A recepcionista do guardador de mochilas olhou-me com um riso irônico e comentou:
_ É muita besteira nessa vida...

_ Tipo... - ri - Quem sabe esse vazio todo de palavras seja invadido pelo conhecimento que as aguarda. Há muito espaço nelas. – Saí constrangida. É descabido falar das pessoas pelas costas, “tipo”... Elas não estavam mais ali para se defender.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

NEGRO ANJO

Hoje ele me beijou. Foi rápido. Encontrou-me quando eu voltava para minha mesa. Sorriu, abraçou-me e me deu um beijo como quem oscula sua fada madrinha depois de receber um agrado. Afagos à parte, só seu riso branco, quando o vi, já havia me queimado as entranhas antes mesmo de ele se aproximar. Será que ele me lê? Balbuciou ao meu ouvido um “oi, tudo bem?” apressado de quem pergunta, sabendo que não terá a resposta verdadeira. “Sim” num cochicho. Devolvi o sorriso. Ele precisa correr de si e de mim. Ambos sabemos que nossas verdades não virão à boca facilmente porque não existem verdades. Restam-nos os lábios roçando nossas faces em desalento, num mundo cujas penas para marginais como nós escoam, direcionando-nos ao esgoto.

GOZO - TONEL DAS DENAIDES

"Não iremos falar de gozo assim. Já disse sobre ele o suficiente para que saibam que o gozo é o tonel das Denaides, e que uma vez que ali se entra não se sabe aonde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é, sempre, o gozo."  JACQUES LACAN (O Seminário - Livro 17)

BUSCA

A vida é esgotamento. Do corpo, da palavra literária, do próprio indivíduo. Entretanto a solidão e a angústia, a crise humana pode não ser o fim e sim a proposta de retomada para novos caminhos. Uma passagem daqui para acolá no tempo e no espaço. Tempo esse que corre, urge à porta dos corpos todos. Existe o corpo. Há vida manifesta no corpo, portanto. Assim sendo, o homem vagueia numa busca constante de si. Não suporta mais o enclausuramento causado pela moral, contudo, de forma mais ou menos palpável, vive recluso no casulo que teceu para si. Como livrar-se das regras? Como fugir deste mundo calcado no extremo da moral, instituída desde a antiguidade pelo próprio homem? Há algo intimamente ligado a ele, do qual não consegue se livrar. Um ser em busca de si mesmo, com um constante sentido de errância.

EXEMPLO COEVO

"O homem, sabe-se, é uma presa fácil da superstição ou de dúvidas, que é incapaz de verificar ou de testar. Só lhe é permitido, então, quando muito, deixar a poesia (ou a ficção) acaparar-se de tais dúvidas para fazer delas o que poderiam ser se ele fosse dotado de omnisciência." 
JOÃO VÁRIO 

quinta-feira, 15 de maio de 2014

MISÉRIAS

"Mais uma vez me bateu a sensação 
da miséria das palavras."
Rastros do Verão 
João Gilberto Noll


quarta-feira, 14 de maio de 2014

TEMPO

O pêndulo na parede emite o aviso contínuo:
"O tempo está se esgotando.
A morte ronda seu espectro o tempo todo.
Tic-tac. Tic-tac."

"BRASIL, MOSTRA A TUA CARA"

Retintos.
Tintos apenas.
Empalidecidos.
Mestiçados.

Negros tantos. Prantos.

Nas cozinhas
Ordens.
Nas ruas,
Som marginal.
Nos guetos
Desterritorialização.
Nas fábricas
Braços.
Nos santos,
Intolerância.
Na escola,
Mãos.

Nas fronteiras entre o isso e o aquilo.
Nem aqui nem lá.

Caídos de navios.
Náufragos desejosos de viver.

No entanto sua terra não os abraça.
Senzala sem teto.




DIVISA

"Não há mais ninguém em mim. No entanto, ainda sobrevive essa certa consciência que quer saber, saber o que é isso de mim qu'inda resiste, entende?"

Na Divisa (A Máquina de Ser) João Gilberto Noll

segunda-feira, 12 de maio de 2014

ESTRANGEIRO NO MUNDO

“Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. O homem é estrangeiro no mundo.” Vilém Flusser, filósofo judeu, nascido em Praga.
"Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem,
que não passa por aqui,
que não passa de ilusão..."
Engenheiros do Hawai

DE ROMA AO GUARUJÁ - Irônico

Para Giordano Bruno, éramos o espelho de Deus. Defendia a infinitude do universo. E ainda  que Deus era infinito, sendo-lhe imanente e transcendente ao mesmo tempo, sem nenhuma contradição, pois os opostos acabam por coincidir no infinito. De certa forma, engrandecia o deus de Moisés, pois quem, senão esse deus, teria criado algo tão soberanamente inimaginável em extensão? Ainda assim foi condenado e queimado pela Santa Inquisição em 1600. Seu reflexo veio tolher-lhe a vida. Benditos sejam aqueles que em nome de Deus fazem justiça com as próprias mãos, ou que em nome Dele sintam-se além do bem e do mal para julgar o próximo. Provavelmente seja esse mesmo o grande mandamento divino e muitos ainda não entenderam. Julgar e matar o próximo, tornar-se deus do outro. Tirar-lhe a vida. Benditos todos os que avançam sobre o "outro" para expurgar-lhe as atitudes (em suas mentes doentes) nocivas, porque se sentem superiores a ele. São deuses. Reflexos de um deus que já se utilizou incontáveis vezes de seus espelhos para quebrarem tantos outros... Irmãos... Irmãos de quem? Filhos de quem? De uma divindade que soube ensinar perfeitamente aos filhos obedientes a "lex talionis". 

AD VINHOS - FILINTO ELÍSIO

andei por califórnias ródanos douros
sonhei ânforas do antanho
deusas etílicas taças de âmbar
poetei absintos versejei labirintos
naveguei pessoas & nerudas
tive orgasmos a imaginar borges
acordei diante de brancos secos
amei com os tintos maduros
encorpados lambruscos
alentejos chãs
ad eternum
ou aqui
agora...



LOUCURA

"A loucura possui uma certa aura, que lhe permitiu, em diferentes momentos da história, ser vista como seu próprio reverso, - sinal de sabedoria em meio a um mundo em desordem." o.O
Regina Dalcastagné 
(Entre fronteiras e cercado de armadilhas)

SEM CHANCE

Risos clareiam o dia
Memória serve para vivermos mais de uma vez.

Não há nada a viver.

Olhos de Medusa
Petrificam todos os sonhos.

Nada a fazer.

A não ser sucumbir sob os resquícios
Ante o que não foi...

sexta-feira, 9 de maio de 2014

FUNÇÃO DA CRÍTICA

"O que importa agora é recuperarmos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais. Nossa tarefa não é descobrir o maior conteúdo possível numa obra de arte, muito menos extrair de uma obra de arte um conteúdo maior do que já possui. Nossa tarefa é reduzir o conteúdo para que possamos ver a coisa em si.Agora, o objetivo de todo comentário sobre arte deveria visar tornar as obras de arte – e, por analogia, nossa experiência – mais e não menos reais para nós. A função da crítica deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa." Susan Sontag

"IN DUBIO PRO REO"

Na obra de arte ou num relato, "encontra-se o absurdo, a loucura, da arte, essa tentativa ansiosa, desesperada e às vezes vã, que nos alucina, de, à parte da vaidade, registrarmos, no breve tempo em que estamos na vida, nossa passagem por ela, em momentos em que realmente estivemos vivos e merecem ser perpetuados." Sérgio Sant'Anna (Um Crime Delicado)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

UM GATO ATEU

Ganhou um gatinho que ressignificou sua vida. Brincalhão como todo gato bebê pode ser. De olhos azuis perdidos na cara cheia de pelos brancos, possuía uma beleza singular aos olhos de sua dona. Arranhava sofás, dependurava-se nas cortinas, puxava fios das roupas, subia em lugares inimagináveis, pulava de altas alturas e derrubava os objetos por onde passava. Sabia das sete vidas, não fora isso, certamente não se aventuraria tanto a correr riscos. Não se sabia ainda que nome poderia ter. A mãe da menina sugeriu que o chamassem de Bin Laden, tamanhas eram as artes terroristas que presenciavam. Ele brincava e corria e pulava, mas começou a derrubar os santos que a mãe da menina tinha em casa. “Este gato é evangélico”, pensou a menina. Em um dia foi-se a Nossa Senhora, no outro, Santo Expedito estraçalhou-se no chão, e assim, Bin Laden foi acabando com qualquer santo que quisesse habitar aquela casa, como se ele fosse o único ser além da mãe e filha, que poderia ocupar aquele espaço. “Esse gato é evangélico. Eu preciso ensinar hagiologia a este pequeno”, pensava a menina. A mãe ralhava, xingava, mas o felino deu conta de exterminar qualquer vestígio de santo. “Bom, não há dúvida, este gato é evangélico”, pensava a menina. Havia restado um Cristo na parede, acima da penteadeira, e estava intacto. Pobre Cristo! Ela deveria ter pensado que Bin Laden poderia ser muçulmano, maometano, budista, sabe-se lá o quê. O cristo crucificado não duraria muito. Certa manhã a menina acordou com um barulho no quarto, lá estava o cristo no chão todo desfigurado, decapitado, e Bin Laden em toda sua formosura sobre o móvel que sustinha um espelho. “Zás”, o chinelo que a menina jogou no gato peralta chegou com tanta força que errou o alvo. Em vez de acertar o felino, acertou o espelho. Bin olhou para sua dona e pelo olhar ela percebeu que por dentro ele ria e certamente pensava: “Eu continuo com as sete vidas, mas quem quebra um espelho...”

Baseado em fatos.
Bj em GRACE ASSUNÇÃO EVANGELISTA.

PELOS TRONCOS DA VIDA

Cemitério. Morada dos que partiram para sempre. Mas é lá que alguns seres vivos escolhem para passear, namorar, transar, refletir, roubar e até fazer uso de narcóticos. Esse era o local preferido de V. Ela curtia aquele ambiente silencioso e isolado para ficar "doida de pedra". Fumava olhando para aquela cidade de mortos como se ela própria fosse parte integrante de lá. Apreciava as flores e por vezes se encantava com um prédio ou outro provido de santos tantos. Às vezes olhava fixamente para um santo grudado a um túmulo, ela que sempre foi cética, e na sua extrema viagem da pedra, imaginava que ele vinha, estendia-lhe a mão e oferecia ajuda. Deixava-se levar pelas ruas da cidade desértica, e percebia que aquele local era seu. Estava condenada àquela condição de fantasma no mundo, em tenra idade. Mesmo quando o alucinógeno lhe proporcionava viagens infindas, era ali que ela acordava. No cemitério da cidade que nasceu. Abrigo. Não via nada de ruim, pois havia plantas e vasos em abundância. Passava longo tempo namorando os vegetais. Louca de pedra.
O traficante também gostava de cemitério. Seu ponto de venda era bem próximo dali. Certo dia, V comprou sua pedra e foi ao cemitério para usar. Aquele dia não queria ficar muito tempo no silêncio. Saiu, e do lado de fora dos muros da cidade dos mortos, deparou-se com uma árvore em cujo tronco sorria para ela uma orquídea grande e colorida. Que mal haveria em levar uma muda? Esticou-se o quanto pode e tentou puxar um pedaço da planta para levar para sua casa. Mas a força que desconhecia nas próprias mãos, trouxe abaixo a orquídea inteira. Teve vergonha de si mesma. Olhou para os lados, ninguém viu. Não poderia abandonar a orquídea na calçada. E pensou que a orquídea não quereria ser abandonada ali. Como se tivesse cometido um homicídio, queria ajuda para ressuscitar a vítima. Voltou então à casa do traficante e pediu-lhe uma sacola plástica grande. Ele, tão cheio de "boa índole", quis saber o que ela faria com a sacola. Certamente passou por sua cabeça que aquela menina louca mataria alguém asfixiado ou carregaria partes de algum corpo que ela acabara de esquartejar. Ficou perplexo ante a resposta da garota. Uma louca de pedra queria uma sacola para carregar uma planta?
V chegou de volta ao local, temerosa de que algo tivesse acontecido à orquídea. Mas lá estava ela, intacta na calçada, aguardando a volta de sua nova dona, que a posicionou cuidadosamente na grande sacola e partiu toda feliz. Quando adentrou o portão de casa, replantou a orquídea, que sorriu em retribuição e disse:
"Que bom que me tirou de lá. Não aguentava mais ver tanta tristeza, de cima da minha morada. Sei que aqui não verei." A menina afastou-se da orquídea, chorou, lamentando sua condição de adicta e pensou consigo: "Até as plantas renascem, por que não eu?". A orquídea, embora não quisesse, viu tristeza na casa de V por meses e finalmente quando a menina se curou, ao acordar, vai até a planta, ambas se olham toda manhã com um olhar cúmplice de quem sabe que o cemitério não as terá por muito tempo.


Baseado em fatos.
Bj em GRACE EVANGELISTA ASSUNÇÃO.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

AS IDEIAS

"É verdade que usufruímos de um tempo com acesso instantâneo à informação. Mas não podemos confundir ideias novas com informação recente. Muitas vezes são as ideias que temos que nos impedem de termos ideias novas. São esposas ciumentas que fecham as cortinas e trancam a porta. E rondamos dentro nós, num saturado monólogo interior. Cansadas, as ideias não fazem senão dormir na cama da memória. E nós nos tornamos naquilo que já fomos." MIA COUTO

O OUTRO

"Aprendemos a demarcarmo-nos do Outro e do Estranho como se fossem ameaças à nossa integridade, mesmo que ninguém saiba em que consiste essa integridade. Temos medo da mudança, medo da desordem, medo da complexidade. Precisamos de modelos para entender um universo (que é, afinal, um pluriverso ou um multiverso) que foi construído em permanente mudança, no meio do caos e do imprevisível. Esses modelos simplificam o que só pode ser entendido como entidade complexa e complicam o que só em simplicidade pode ser apreendido. Temos medo dos que pensam diferente e mais medo ainda daqueles que são tão diferentes que achamos que não pensam. Vivemos em estado de guerra com a alteridade que mora dentro e fora de nós." MIA COUTO em conferência na UFRGS, 2012.


terça-feira, 6 de maio de 2014

A COR DO ENSINO SUPERIOR

No ambiente que estou confortavelmente instalada neste exato momento, há pelo menos oitenta lugares para as pessoas estudarem. Poucas pessoas às vezes. Dez. Vinte e cinco. Não sei quantos. Tantos... Tantos estudantes. Algumas vezes me deparo com todos os assentos ocupados. O silêncio impera ainda assim. Entram, debruçam-se sobre os livros, leem muito e saem. Não se vão da mesma forma que adentraram este lugar, impossível sair daqui do mesmo modo que chegamos. Há tantos mundos nas prateleiras. É possível viajarmos pelos ares, oceanos, estradas sem fim. Hoje viajei para a Espanha, e montada no cavalo Rocinante, cavalguei longas paisagens verdejantes.  
Depois de algumas horas envolvida com meus afazeres, levanto a cabeça e passo rapidamente os olhos a minha volta. Lotação esgotada. São tantos... Volto às minhas obrigações. Algo me inquieta deveras. Levanto a cabeça e olho de novo. Tento não suscitar suspeitas sobre a minha curiosidade. Mas preciso ter certeza. Por cima dos óculos, disfarçadamente, olho mais uma vez. Com o cuidado de observar bem os que estão às minhas costas também. Não pode ser possível! Não soube disfarçar tão bem. O rapaz que se senta à mesa atrás de mim cruza o olhar com o meu. Longos cabelos "rastafari". Ele é o único negro na sala. Numa sala de oitenta pessoas graduandas e pós-graduandas ele é o único negro... Clichê demais falar sobre isso, portanto paro por aqui.


Não!!! Ele não é o único. Vejo lá no canto da sala um funcionário da biblioteca que silenciosamente monta uma estante portátil. Ele também é negro. Vejo-o todo dia com seu riso gentil. Ufa! Não tem só um na sala.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Malogro do poeta

Por todas as noites mal dormidas,
Por todos os monstros embaixo da cama,
Obrigado.

Por todas as viagens sem ida,
Por todas as voltas sem sonhos,
Obrigado.

Por todos os gritos abafados
Por todos os silêncios doloridos,
Obrigado.

Por todos os deuses que não protegeram,
Por todos os demônios que não surgiram,
Obrigado.

Por todas as palavras que não nasceram,
Por todas as letras borradas de morte.
Obrigado.

Eu, poeta, me faço assim, com sangue e dor.

Íntimo

[...] Através de nós alçam voo
Os pássaros em silêncio. Ó, eu, que quero crescer,
Olho para fora e a árvore cresce em mim.”

RILKE


A quem contempla

“O espaço, fora de nós, ganha e traduz as coisas:
Se quiseres conquistar a existência de uma árvore,
Reveste-a de espaço interno, esse espaço
Que tem seu ser em ti. Cerca-a de coações.
Ela não tem limite, e só se torna realmente árvore
Quando se ordena no seio da tua renúncia”
RILKE
Contra o acidente dos limites, a árvore tem 
necessidade de que lhe dês tuas imagens
superabundantes, alimentadas por
teu espaço íntimo.
(Bachelard)

Imensidão

E eu me recrio com um traço de pena
Senhor do mundo,
Homem ilimitado.
(Pierre Albert-Birot)
Por mais paradoxal que possa parecer,
muitas vezes é a imensidão interior
que dá o verdadeiro significado
a tantas coisas que vemos...
(Gaston Bachelard)

domingo, 4 de maio de 2014

VERDE VIDA

           Sabe-se lá por que, mas ela gostava de plantas. Obcecada, na verdade. Fumava pedra. Para uns, a crackeira. Para a família, a garotinha que estava perdida num labirinto sem saída. Para a mãe, sofrimento de tamanho imensurável. Mas ela amava plantas. Mesmo nos momentos de profunda alucinação, era o que enxergava. Nas casas por onde passava. No cemitério, reduto para seu delito. Nas árvores, naturalmente dependuradas. Plantas. Com flores ou sem elas. Plantas. Que significado poderia haver para uma adicta que não conseguia mais encontrar-se a si mesma nesse mundo cruel, roubar plantas? Ela roubava. Roubava porque amava. Porque o que lhe restara de humanidade se fazia presente quando encontrava plantas. Porque têm a cor da esperança. Talvez se agarrasse às plantas como quem se agarra a um pedaço do navio que naufragara, para se salvar. Humanidades.
Com o transporte que lhe restara para percorrer os longínquos caminhos em busca da pedra, uma bicicleta, saía desvairada pelas ruas até saciar a fome do vício. E sempre observava as plantas por onde passava.
Deu-se que certa vez passando diante de uma casa, depois de ter usado, deparou-se com uma área ornamentada por quatro xaxins de samambaias de metro. Ficou encantada. Parou. Admirou longamente. Com o resto de inocência que lhe restava, resolveu pedir à dona, uma muda da planta. “Que maravilha”, pensava. “Como são enormes!!! Quero uma dessas...”. Bateu à porta. Saiu a mulher com cara de poucos amigos e depois de ouvir o pedido, respondeu: “Você acha que eu as teria se desse mudas para todo mundo que me pede?”. A menina ficou decepcionada, mas fingiu ter aceitado a recusa. Indignada por ter o pedido negado, montou sua bicicleta e foi-se. Nunca mais saiu da sua cabeça aquelas samambaias de metro. “Eu quero ter.” Entretanto o “nunca mais” foi pouco tempo. Alguns dias depois, por acaso, sem muito acaso, passou novamente diante da casa. Seus olhos petrificaram diante da beleza das samambaias de novo. Eram tão longas. Tão belas. Pareciam cachoeiras verdes a despencarem dos xaxins. Samambaias de metro. Cachoeiras. Vida. A vida que a menina não tinha mais. Tão verde. Tão viva! Ela queria. Observou por alguns segundos. Nenhum movimento. Abriu o portão da casa sorrateiramente, como quem vai roubar um tesouro. Em silêncio adentrou a área, apossou-se de um dos xaxins, depositou-o no cano da bicicleta e saiu em disparada, levando o tesouro outrora inacessível. Sorria e pedalava. A cabeça cheia de pedra e o coração aquecido pelo ouro verde que levava. O vento batia em seu rosto e soprava delícias nos ouvidos: “Agora sim você tem uma samambaia de metro. Já que não lhe deu uma muda, leva-a inteira.” Entretanto, na corrida alucinada que ia, com suas pedaladas rápidas, temerosa de ser pega em delito, não percebeu o infortúnio. Chegou em sua casa, louca e feliz com a samambaia no cano da bicicleta. Missão cumprida! Entrou, fechou violentamente o portão, segurando a bicicleta, sempre olhando para os lados com medo de ter sido seguida. Estava alucinada! Louca de pedra.
Quando foi tirar o xaxim do seu meio de transporte, notou que não havia metro. Nem um. Nem dois. Nem nada. A samambaia havia se enroscado nos raios da roda, ornamentando a bicicleta. Pôs o xaxim diante dos olhos, lançou um olhar para a roda traseira, sem entender direito o ocorrido. Estava louca. Louca de pedra. Nem percebeu quando a vida foi se enrolando nos raios. De novo perdera. O verde do xaxim não mais existia. Estava morto na roda. Cabisbaixa, entrou com a raiz plantada nas mãos e começou a regar. Haveria de crescer de novo... Brotou, mas não cresceu. Nada de metro. Só alguns centímetros. “Será que foi castigo?”, pensava a menina. Ela ainda conseguia pensar em castigos. Não foi. A samambaia não cresceu, mas a menina sim. Voltou a viver, não sem dor. Renasceu. Nada mais de loucura de pedra. Nada mais de roubos de plantas. Curou-se das drogas, mas não das plantas. Rega a samambaia sempre, mas esta não cresce. O fruto do roubo está lá na área todos os dias olhando para ela, e diz quando a vê: “Você é muito mais forte que eu.”




Baseado em fatos. 
Bj enorme em GRACE ASSUNÇÃO EVANGELISTA. 
Pura inspiração.