segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Começo a conhecer-me. Não existo


Começo a conhecer-me. Não existo

Fernando Pessoa
( Álvaro de Campos )

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

TUDO


“O EU É UM OUTRO” Rimbaud


“NINGUÉM NASCE ODIANDO OUTRA PESSOA PELA COR DE SUA ORIGEM OU AINDA POR SUA RELIGIÃO. PARA ODIAR, AS PESSOAS PRECISAM APRENDER, E SE PODEM APRENDER A ODIAR, PODEM SER ENSINADAS A AMAR.” NELSON MANDELA

ÁLIBI


Se eu soubesse da existência do Césio

Teria me mudado da Terra

Se eu notasse em sonhos, destroços,

Não teria participado dele.

Se eu ouvisse o silêncio dos surdos,

Teria gritado com eles.

Se eu enxergasse com os olhos de um cego,

Teria visto “Deus” no trono.

Se eu não conhecesse o Homem,

Teria crido nos construtores da paz.

Se eu acreditasse na vida,

Não teria tentado dar fim à minha.

Se eu ganhasse afeto,

Não teria deixado essas palavras com fel.

Se eu soubesse...Ah, se eu soubesse...

Não teria vindo dessa geração de crianças traídas

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O VOO


__ Eu os abençoo porque sei que vocês leem e acreditam na bíblia. – disse o padre, lá do altar.

Nós sabíamos que ele sabia que o que dizia era mentira, eu não estava envolvido nesse pronome (vocês), mas continuou:

__ Sei que vocês creem no que não veem, por isso estão aqui.

Naquele momento, senti uma espécie de enjoo. O padre certamente tinha conhecimento de que eu era um antirreligioso há muito tempo. Mas ele insistia em me fazer pensar que ele não percebia isso. E que tipo de epopeia eu escreveria indo de novo à igreja?

Achei que o padre estava praticando um ato desumano, me olhando intensamente, o que fazia com que a assembleia toda se fixasse em mim, como seu eu fosse um homem da pré-história, ou então um paranoico que estava ali para receber o que merecia.

Parecia que a “colmeia do Senhor” tinha chegado para me entregar o troféu de debiloide.

A feiura das caras fechadas dos fieis me deixavam ansioso, mas o herói da odisseia continuava firme, fingindo não se sentir intimidado.

Então pensei em sair dali calado, como entrei. Dei os primeiros passos, com ar descontraído, mas ouvi o padre vociferar:

__ Para! Para para Deus, meu filho! Você precisa se deixar envolver...

Fiz um esforço sobre-humano para pisar sobre minha vergonha:

__ Perdão, padre! Fui acometido por um processo antieducativo, prefiro hoje a autoaprendizagem. Como sabe, sou meio antissocial, por isso aqui mesmo fiz uma auto-observação e percebi que não posso fazer parte da sua alcateia.

__ Alcateia não! Rebanho...Meu rebanho!

__ Sabe, padre, já levei muitos pontapés na vida. Engoli jiboias e lagartos de toda gente dessa cidade medíocre, só porque queria ser eu. Todos sabem que sou ex-coroinha, e que era superexigente comigo na questão de que um dia iria para um semi-internato, onde pudesse aprender coisas mais interessantes do que histórias interestelares. Mas nem tive a chance, padre. Sabe que sou ex-aluno da escola de paraquedismo, e pude ver lá de cima, quando saltava, a imensidão do mundo e a pequenez do ser humano. Foi assim que vi sua alcateia rosnando e mostrando os dentes afiados a todos os que ousassem uma história além-mar. Eu ousei. Amém.



Ps: Produzido apenas com intuito de utilizar palavras modificadas, ou não, pela Reforma Ortográfica.

O MEU PRÓXIMO


Ontem doeu a minha alma,
Culpa do meu próximo.
Meus sonhos foram pisoteados,
Culpa dos pés do meu próximo.
Minha esperança foi arrancada,
Culpa das mãos do meu próximo.
Minha vida está escancarada,
Culpa dos olhos do meu próximo.
Cuspe há na minha alegria,
Culpa da boca do meu próximo.
Breu e névoa cobrem minha mente,
Desesperadamente preciso matar o meu próximo,
Mas ele está cá, bem dentro de mim...

AUTORRETRATO


Conheceu um antissemita ainda na infância. Difícil isso para alguém que não sabia sequer o significado da palavra antirreligioso, adjetivo que a si atribuiria quando adulto.

Ouvira tantas histórias sobre espermatozoides (ainda na escola), sem saber da ideia do pecado embutida nesse vocábulo.

Brincara com frequência perto de colmeias, caçara jiboias para sustentar sua autoimagem heroica, pois sonhava trabalhar num projeto que lidasse com paraquedas ou com sistema antiaéreo em guerras. Era tudo ou nada.

Crescera um garoto super-resistente no que dizia respeito a autoavaliação. Nunca quisera falar sobre si mesmo.

Certa vez, caminhando sem rumo, já meio paranoico por não ter o que fazer, viu a porta semiaberta do museu da cidade. Não titubeou. Adentrou e paralisou diante de uma obra neoexpressionista. Sentiu-se diferente, suprassensível, quando viu naquele quadro a figura de uma plebeia. Finalmente distinguira algo significativo lá. Aquele rosto tranquilo, porém sofrido do quadro mudaria sua vida.

De repente ouviu-se um estrondo e um controle semiautomático comandara a porta que às costas dele se fechava. Correu com a força de um super-homem e fez um esforço sobre-humano para sair antes de a porta ser lacrada.

Não se importou com o ocorrido, mas havia algo estranho. “Talvez alguém que trabalhasse na contraespionagem no país o confundira com um espião”. Pobre menino! Apenas um intruso é o que era. Mas um dia se tornaria o arqui-inimigo do rei, um anti-imperialista. Seu nome entraria para a história como o temido, mas ultrarromântico defensor dos oprimidos. Fora cruel quando necessário, e demonstrara sensibilidade nos momentos de dor alheia.

O antissemita, a plebeia, as caçadas e tudo o que passara fizeram com que o menino-homem alçasse voos infindáveis e longas viagens pela autoestrada da vida. Seu nome era Hífen do Trema Circunflexo Agudo.

Rozenice E. Sanches

PECADO CAPITAL


“Cada um dos sete pecados capitais carregam seus estigmas, porém não deixam de carregar matizes aos olhos de seu pecador.” 15.04.08

Ainda muito pequena a menina fora introduzida no mundo dos livros. Antes mesmo de aprender a ler e escrever, uma de suas tias lhe dava o prazer da viagem a histórias de todos os gêneros, sem se deslocar de casa. Na verdade saiam sim, pois a tia encilhava um cavalo toda tarde, punha a menina na garupa e saía para cavalgar, ávida por contar os capítulos do que lera naquele dia. A criança aguardava esse momento como se fosse a chegada de um circo.

Se deliciava com cada palavra pronunciada pela moça que a carregava para os contos de todas as mil noites. Conhecera até o grande amor de Ceci e Peri nessa época.

Deitava-se e ficava horas imaginando os amores todos do mundo. Menina sonhadora.

Quando seus avós não tinham muitas ocupações, contavam histórias do folclore brasileiro, em especial as mais assustadoras; das grandes boaiadas levadas durante meses por peões sujos e cansados, que viam sempre alguma assombração; dos cachorros loucos que apareciam embaixo da cama de alguém ou que sempre corriam atrás de transeuntes pelas ruas, com mais freqüência no mês de agosto; e de pessoas que foram para o outro mundo, mas que teimavam em voltar para esse dos vivos, causando arrepios em quem ouvia deles falar.

A garota ia dormir então apavorada, com medo de pôr os pés no chão. Como saberia se não tinha algum cachorro louco escondido embaixo de sua cama, e que de repente com os olhos vidrados a mordesse e ela também ficasse louca, como os avós diziam que acontecia? Menina amedrontada.

Quando aprendeu a ler, rolou pelas leituras encantadas dos contos de fadas, alguns que até já conhecia. Comprava e trocava gibis de seus colegas, escondida de seu pai, pois por causa da religião, não lhe era permitido ler tais pecados. Ela, ingenuamente suscitou a desconfiança de seu pai sobre a “heresia”, quando passou a se trancar em seu quarto por tardes inteiras. Então o genitor descobriu as dezenas de gibis escondidos embaixo do colchão da leitora, e diante do choro incontido da menina fez uma fogueira na calçada com todos aqueles quadrinhos coloridos que a fizeram feliz durante tanto tempo. Menina desiludida.

Lia a bíblia, quando não podia ler outra coisa, adorava as histórias de milagres. Menina religiosa.

E pelos primeiros seis anos de estudo, conheceu e leu o que havia de Coleção Vagalume na biblioteca de sua escola. E tinha muito. Essa fora a melhor obrigação que lhe impusera a professora de Língua Portuguesa, pois agora seu pai não a poderia proibir. Chorou, sorriu, sofreu, questionou-se e viajou com cada personagem. Menina leitora.

Ainda lia a bíblia, quando não tinha outro livro à mão. Menina persistente.

Aos treze, começou a ter sensações estranhas com os romances que fantasiavam lindos casos de amor, em que havia homens e mulheres perfeitos, descreviam cenas de sexo com certa suavidade, cheias de prazeres desconhecidos até então para a adolescente. Menina mulher.

A bíblia era uma constante em sua vida. Menina desinteressada.

Encontrou-se com a poesia, passava o tempo lendo, decorando e declamando. Menina romântica.

A bíblia vivia em seu encalço, insistindo para ser lida. Menina arredia.

Adiante, conhecera grossos livros de casos verídicos sobre os horrores do holocausto, das “Febens”, dos presídios, das ditaduras. Vivia as dores do mundo como se fossem suas. Menina indignada.

De vez em quando bisbilhotava a bíblia. Menina cética.

Um dia se revoltou com as injustiças do mundo, conheceu autores mal vistos pela igreja. Sua vida se transformara em um turbilhão de dúvidas. Menina atéia.

A bíblia permaneceu num canto, sem deus.

Abdicou de todo tipo de leitura. Menina morta.

CAMINHO SUAVE


Tudo o que aquela garotinha queria era ir à escola. Já iria completar 7 anos e seus pais não a matricularam na pré-escola (privilégio de classe alta).

Ela sabia que teria que dividir o material com os 3 irmãos. Teria vergonha quando um deles batesse à porta de sua sala para pedir o lápis de cor, já que uma caixa apenas serviria para a família. Mas ela estava ansiosa demais para deixar esses detalhes abaterem-na.

Foi. Conheceu sua primeira professora. Lúcia. Era a mulher mais linda, mais adorável, mais agradável, mais encantadora do mundo. E seria muito mais que tudo isso porque mostraria à menina os caminhos suaves do be-a-bá.

A garota se esforçava ao máximo para aprender tudo o que a professora ensinava. Conheceu uma historinha que se chamava “Quer ser meu amigo?”. Falava de um garoto que não tinha amigo nenhum, então viu um pássaro numa árvore e ofereceu dinheiro para que o bichinho fosse seu amigo. A ave respondeu que amigo não se compra, se conquista. Ficara encantada, a pequena: “Puxa! Não se compra amizade.”

Mas um dia uma coleguinha da escola disse a ela que não queria mais ser sua amiga porque nunca trazia dinheiro para lanche e a outra concorrente à amizade sempre tinha lanche para dividir. Fora trocada. “Amizade se comprava?”

Depois que aprendeu a ler, ninguém mais aguentava a leitora. Lia placas, folhinhas de comércio espalhadas pelas paredes da casa, em decoração, rótulos sobre a mesa, marcas de carro e até as pequenas listas de compra que sua mãe eventualmente lhe dava para buscar na “venda” da esquina. O dono da venda marcava tudo num caderno brochura grande, com uma letra ininteligível e a estudante pensava: “Como eu poderei saber o que ele está marcando, se não entendo?”, mas os pais nunca reclamavam quando iam pagar a conta. Certamente eles entendiam a letra também.

Então ela aprendeu que a letra “L” pode ter som de “U”. “Uau! Que interessante!”. Viu uma folhinha nova que a mãe trocara na parede e como tudo o que era novo estava para ser descoberto, lá foi ela diante do calendário de propaganda e leu em voz alta para que a mãe ouvisse e soubesse como ela estava boa de leitura: “Comércio Silva “Úteda”.

-- “O quê?” – a mãe perguntou assustada.

--“Úteda, uai.”. A senhora caiu numa gargalhada tão alta que a própria avó podia ouvir na casa ao lado.

A decifradora de palavras não entendia bem o motivo do riso, mas quando a mãe finalmente conseguiu acalmar-se, disse: “Limitada, Comércio Silva Ltda.” E explicou a ela que o “L” só funciona como “U” no meio das palavras.

A pequena pensou: “Sei lá...Depois pergunto para minha professora, porque minha mãe não sabe de nada.”