domingo, 26 de junho de 2016

SIMULACRO

Vá embora com sua verdade e seus asseclas.
Nada do meu mundo lhe pertence.
Minhas mentiras são mais confiáveis,
Do que os fatos que supõe autênticos.

Transpus os muros encontrados.
A pedra de Sísifo não rolou.

Flores uma vez colhidas não renascem.
Engasgue-se, pois, com seu ódio.

Porque o risco de ser simulacro
Corre-se todos os dias.
E somos. 

sábado, 25 de junho de 2016

O EU EM MIM

Quem sou eu com você?
E nos sonhos? E no amanhecer?

Quem sou eu em família?
E à noite? E de dia?

Quem sou eu quando calo,
De indignação? E se falo?

O que sou para os amigos?
E os transeuntes? E os amantes?

Quem sou eu despido de alma?
E no súbito da raiva? E na calma?

Quem sou eu comigo?
E com você? E sem nós?

Eu não sou eu. Não só.
Eu sou muitos. Inúmeros.

Tantos, que não se acharam.
E todos os dias tornam-se pó.
Viva aos mestres tantos!!!
Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Mia Couto...

AMAR - AMARO - DRUMMOND

Por que amou por que amou 
se sabia 
p r o i b i d o  p a s s e a r  s e n t i m e n t o s 
ternos ou desesperados 
nesse museu do pardo indiferente 
me diga: mas por que 
amar sofrer talvez como se morre 
de varíola voluntária vágula evidente?
ah PORQUE AMOU 
e se queimou 
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos 
lúgubres de você mesm (o, a) 
irm(ã,o) retrato espéculo por que amou? 
se era para 
ou era por 
como se entretanto todavia 
toda via mas toda vida 
é indagação do achado e aguda espostejação 
da carne do conhecimento, ora veja 
permita cavalheir(o,a) 
amig(o,a) me releve 
este malestar 
cantarino escarninho piedoso 
este querer consolar sem muita convicção 
o que é inconsolável de ofício 
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima 
a vida também 
tudo também 
mas o amor car (o,a) colega este não consola nunca de núncaras.

(Carlos Drummond de Andrade)

ANÓDINO

Em que medida
A ausência de perspectiva
Fez-te enveredar por um mundo vazio de formas?

O que queres mais?
Eis o sincretismo que sonhaste.
Fundiu a nossa dor tão distinta.
Mas possuíste só a tua.

De todas as vezes que partiste,
Essa foi a única que voltaste só para ti.

E só, penetraste no teu mundo oco de vida.

domingo, 12 de junho de 2016

OS NINGUÉNS - EDUARDO GALEANO

As pulgas sonham em comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico de sorte chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chova ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os dono de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.



sábado, 11 de junho de 2016

POESIA DE HILDA HILST

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.