quarta-feira, 9 de setembro de 2009

AULA

Eu o olhava tão fixamente que até ele pensava ser ouvido por mim. O tempo todo o seguia com o olhar, sua boca se mexia numa frenética dança sem pausa, mas eu não ouvia nada.
Viajei por longes lugares. Isso era bom. Nosso cérebro tem o poder de nos levar
a épocas e espaços nunca conhecidos.
De repente ouvi algo sobre gregos e pra lá fui. Como é escuro dentro do cavalo e esses soldados falam coisas que não entendo, num cochiço ininteligível. Dormi e quando acordei, estava sozinha no cavalo e os soldados gritavam lá fora e festejavam alguma vitória. Resolvi sair e, imagine minha surpresa quando pus a cabeça entre as nádegas do cavalo... O que era aquilo?
Eram milhares de palavras pisoteando outras e gritando em várias línguas uma só palavra que parecia ser: freedom, liberté, libertá, liberdade, sabe-se lá....Era algo assim...
Fiquei perplexa quando comecei a ler tudo o que estava no chão: gramática, sintaxe, semântica, morfologia, desinências, significação, base... Tentei descer rápido do cavalo, mas quando iria pisar em terra estava lá: "Preconceito", tentando fugir dos pisoteadores, que até então eu não sabia quem eram.
Com gosto de glória, pulei com os dois pés prendendo-a, e desesperadamente pedia ajuda.
Então as revolucionárias vieram me ajudar. Levantei a cabeça e comecei a ler os nomes das minhas ajudantes:
solidariedade, igualdade, fraternidade, caridade....Tantos "ades", que me deixaram zonza.
           _ Agora façamos uma avaliação! - falou alto aquele homem lá na frente.
Assustei-me quando dei por mim e percebi que nada sabia do que ele havia dito.
Peguei aquela folha em branco e escrevi um pequeno trecho sobre o Cavalo de Tróia.
Na outra aula, meu mestre veio a mim, só a mim, e sussurando, disse-me:
           _ Eu também estive lá!
                                                               Rozenice E. Sanches

sábado, 5 de setembro de 2009

LAPIDAR-SE



         Com o tempo, percebe-se que algumas coisas que pareciam insignificantes, tornam-se essenciais.
         Tenho conhecido o sabor da vida, à medida em que a mesma é devorada ferozmente por seu insensível predador, o tempo.
         E só quando se entende a rapidez com que a vida passa por nós, é que a desejamos mais e melhor, e até vivê-la assim.
         Os sonhos então vão se tornando pequenos, e a efemeridade das coisas nos faz correr contra o mundo e, não raro, contra “Deus”.
         Pior que rebelar-se contra Aquele em quem nos ensinaram a obedecer e amar, é saber que quando chegamos a uma idade terrena avançada, finalmente nos tornamos uma pedra lapidada em sua quase totalidade. Quando parecemos prontos para a vida, de fato, com as qualidades que Ele espera de seus filhos, é tarde. Não mais somos uma jóia pura e eterna. Passamos de pedra a pó novamente. É hora de entregarmo-nos à morte.

CURA

"INCONSCIENTEMENTE TODO SER HUMANO VIVE EM BUSCA DA CURA PARA O MAL DE SI MESMO." Roze

Parodiando

Eu não vi a alegria
Não sei se a alegria existe
A alegria não me importa e nem me diz nada.
A alegria nos consola
De um consolo  mórbido
E insosso.
Não quero a apatia
Dos ridículos momentos do riso.
Prefiro o fecundo tédio
Dos que conheceram
A poesia.
                                             Roze

O inacessível me alenta...

"Só me interessa o inatingível.
O desejo só me vem pelo inalcançável.
O sonho que alimento é o do impossível.
Por isso só."  Roze

^^

"Eu preciso crer na voracidade do meu desejo, porém...
...Cuspo, ébria, sobre a massa esquálida que compõe minhas vontades todas."  Roze

POR QUEM OS SINOS DOBRAM?

Os sinos dobram
Pela noite sangrenta e fria.
Os sinos sangram
Ao dobro de uma vida vazia.
Os sinos cantam
À missa do primeiro dia.
Os sinos avisam
Da paz que virá, tardia.
Os sinos dormem
Pelo cansaço dos bóias-frias.
Os sinos dobram
Pela morte da arte de amar.
Os sinos tendem
A cair como a noite cai no mar.
Os sinos invocam
Ao “Senhor”, hospedado no altar.
Os sinos queimam
Os ouvidos dos que estão a chorar.
Os sinos sentem
A dor, de pela morte, um sino dobrar.

NADA

VALHA-ME, Ó DEUS DOS ATEUS E DESESPERADOS.
FAÇA RENASCER EM SUA FILHA BASTARDA
O DESEJO DE CRER EM ALGO QUE NÃO SEJA O DESAPARECIMENTO DOS SONHOS.
RESSURJA DAS CINZAS, Ó DEUS DOS PECADORES E ÉBRIOS,
RASGUE-SE TODO VÉU QUE OFUSCA NOSSA FACE.
IGUALE-NOS, ÀS COBAIAS, AOS BICHINHOS DE LABORATÓRIO QUE DISSECAMOS
PORQUE É ASSIM QUE SE SENTEM AQUELES QUE NÃO QUEREM MAIS SER NADA.

ARTE VIVA


         Estacou diante do quadro “O GRITO”, de Munch, porque sentia-se diante de um espelho.
         Entrou naquele museu como quem entra em si mesmo. Caminhou sem rumo pelos longos corredores com o olhar perdido, fitando as paredes sem nada ver, pois seus pensamentos se distanciavam dali. Queria não mais pensar. Desejo profundo de matar todos os seus sentidos. Mas diante d’O GRITO parou, ereto. E então num golpe rápido, com a navalha que carregava escondida no bolso do casaco, jogou-se sobre o quadro golpeando-o incessantemente.
         As pessoas se afastaram, assustadas, porém sem perderem de vista aquela cena brutal e insana. Ninguém ousava se aproximar.
         Terminado o serviço, pedaços da tela jogados ao chão, ele, o homem, com uma indescritível satisfação estampada no rosto, sentou-se escorado na parede e levou à boca pedaços da pintura destruída, saboreando-os como quem participa d’a última ceia. E diante da multidão perplexa e dos guardas embasbacados, desferiu um golpe certeiro em sua jugular. Jorrava do pescoço aquele líquido quente e vermelho a metros do seu corpo, colorindo todo o cenário antes tão acinzentado.

A VIAGEM (Dedicado a uma criatura "pra lá" de especial...De outro mundo: Sandra)

Não há nada mais desagradável no contato social do que relacionar-se com pessoas que fingem ouvi-lo, mas não ouvem.
Certa feita, conheci uma criatura que era perita na arte de “viajar” enquanto alguém falava. Tão perfeito seu olhar petrificado em quem discursava, que ninguém podia desconfiar que ela olhava, mas não via; escutava, mas não ouvia.
Incontáveis as vezes em que falando com ela, faziam aquela perguntinha de quem deseja ouvir que está de acordo: “Não é?”
_ Ah, é sim!
_ Claro, claro!
_ Você está coberto de razão!
_ Ãhã!!!,
_ Pois é!!!
Essas eram as frequentes respostas daquela “marciana”.
Então, como sempre acontece na nossa vida previsível, algo desse tipo aconteceu... O previsto se deu.
Ela conheceu um “marciano”. Sem ouvirem um ao outro, apaixonaram-se, casaram-se e permaneceram mudos nos seus mundos para sempre.

QUE TEMPO?


O que fizeram com o tempo?
A vida me passou tão despercebida que nada sei dela.
Os meus sonhos foram doados, obrigatoriamente, e nem sei a quem.
As armas estão negras de tanto as pessoas, que não são soldados, as manusearem.
Corpos e mais corpos no mercado, trocados por um “crack”, que não é o quebrar de um galho.
O lodo da injustiça vedou os olhos dos ex-honestos que agora se esbanjam.
Os dias são tão longos quanto a rajada de uma metralhadora, e não os sentimos.
As noites são tão curtas quanto os efeitos da bomba atômica, e não as queremos.
As favelas são tão limpas quanto nossos ilustres governantes.
O Minotauro começa a sair do labirinto, e nós estamos na entrada.
É preciso um existir para que possamos encontrar a saída, mas...
Algo me entristece e me apavora:
NÃO HÁ MAIS TEMPO.

SONÂMBULO (Conto dedicado a meu irmão mais velho)


                   Ela acordou no meio da noite escura e densa sem que a chamassem. Mas alguma coisa acontecia. Ouvia conversas e sussurros de pais preocupados. Quase bebê ainda, não conseguia entender o que de fato acontecia.
                   Levantou-se, e com suas perninhas curtas caminhara até a sala onde a movimentação se dava. Vá pra cama, menina! – Seria uma preocupação a mais, se ficasse acordada.
                   Deixou-se ficar num canto atrás da porta do quarto ouvindo, pois o sono da casa havia desaparecido:
                   - Mas ele não está em lugar nenhum da rua. – o pai dizia para a mãe aflita.
                   Seu irmão mais velho havia saído durante a noite sem avisar. Moravam em uma cidade pequena demais para que o menino pudesse desaparecer tão rapidamente.
                   Você sabe, quando alguém se levanta dormindo, não deve ser acordado, porque a morte o carrega. A menininha já tinha conhecido histórias de pessoas que morreram quando alguém a acordava do sono. Ou então que o correto seria essa pessoa por os pés nas águas de um rio, ou lago para acordar sozinha. O problema era que naquela cidadela não havia um rio ou um lago. Eram só escassas casas numa vizinhança em que todos conheciam a vida de cada um.
                   O pai saiu de novo pela rua para procurar o irmão. A mãe caminhava sobre o piso vermelho brilhante da sala de um lado para outro, como se estivesse aguardando a hora do parto.
                   De novo o chefe da casa voltou da busca, sem sucesso.
                   A mãe já começava a chorar num desespero próprio que só as mães sentem quando perdem uma cria.
                   A menina continuava a espreitar tudo, de trás da porta do quarto.
                   Os dois se dirigiram ao quarto dos meninos para chamar os outros dois que ainda dormiam o sono dos inocentes. E quando entraram no quarto, a menina ouviu sussurros de uma família aliviada. O irmão que tinha saído já dormia de novo em sua cama, numa ingenuidade quase animal. Ele saiu, caminhou pela rua da pouca cidade e voltara por um lugar desencontrado do pai. Como quer que tenha voltado, não foi visto por ninguém em seu retorno, mas jazia ali em seu túmulo noturno, como se nunca tivesse saído.
                   A casa ficou silenciosa de novo e cada um voltou para seus lugares, menos a menina.
                   Com o breu na casa, ela não tinha coragem de sair de trás da porta nem para caminhar até sua estreita cama que a acolheria e protegeria de todos os medos e males. E se seu irmão saísse de novo?
                   De manhã, a mãe a encontrou encolhida atrás da porta, gelada de medo e com a cabeça cheia de perguntas. A garotinha  passou a noite ali, de onde talvez pudesse perceber qualquer movimento de abrir e fechar de portas, caso acontecesse novamente. Dessa maneira, ela conseguiria guardar a família dos seus pavores noturnos que agora aumentaram.

DESIRE


COMO NÃO MASSACRAR TODA ESSA NATUREZA INÚTIL?
DE QUE MODO FUGIMOS DE NOSSOS FÚTEIS INSTINTOS?
A HORA É TARDE E OS DESEJOS, MUITOS.
DESEJO DE NÃO PARAR MAIS DE FAZER AMOR COM AS PALAVRAS...
DE SER POSSUÍDA POR TODAS ARDENTEMENTE,
DE EMPRENHAR-ME DOCEMENTE DE FETOS VERNÁCULOS
DE SENTIR TODO MEU CORPO TOMADO POR VOCÁBULOS ANTES DESCONHECIDOS
E DEPOIS DAR À LUZ, NUM PARTO SUAVE E SERENO COMO A MORTE,
A INFINITAS IDÉIAS JOGADAS NOS PAPÉIS,
NAS PAREDES,
NAS NUVENS,
NOS MUROS,
NA REESCRITURA DA BÍBLIA,
ENFIM, NA VIDA,
PORÉM A HORA É IDA
E O ABORTO ESTÁ À PORTA NOVAMENTE,
TÃO FORTE QUANTO O DESEJO QUE TIVÉRAMOS NO ATO DA CONCEPÇÃO.
Roze - 29.03.2008

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Esfinge


"Sou tão misteriosa que não me entendo..."

"Eu não decifrei a Esfinge, mas ela também não me decifrou." Clarice Lispector

Morte


"A MORTE VEM SORRATEIRAMENTE...

INSANA, LEVE, CRUEL, ÁVIDA...

LEVA OS SONHOS, ALEGRIAS E DORES QUE A VIDA CARREGA.

É TÃO ESTRANHA E TÃO FAMILIAR.

ROUBA PARA ALIMENTAR OS VERMES.

ROBIN HOOD SEM CLASSE SOCIAL."
Roze

Tempo


“O TEMPO, ESSE ENGOLIDOR DA VIDA, NOS DIZ TODO DIA QUE ELE ENGOLE TUDO: DORES, AMORES, FLORES. CAUSA-NOS DISSABORES QUE NÃO TERÍAMOS AGORA SE NÃO O TIVÉSSEMOS DESAFIADO.”
Roze

Lispectoriando...


" Escuta: eu te deixo ser. Deixa-me ser, então." Clarice Lispector

Clarice forever...


"E se me achar esquisita,
respeite também.
até eu fui obrigada a me respeitar". Clarice Lispector

Crônica da Morte


Toda vez que é noticiada a morte de alguém, muitos põem-se, naturalmente, a refletir sobre os muitos mistérios que acompanham a caveira empunhando uma foice.
Foi no velório de uma colega de trabalho, não muito íntima minha, que pude sossegadamente analisar alguns acontecimentos esquisitos que nos trazem esses momentos fúnebres.
Sentada numa cadeira fria da capela mortuária, a certa distância do caixão, para não correr riscos de olhar de vez em quando para a figura ida que ali se punha na horizontal, observei os transeuntes. Familiares chorando, amigos entristecidos e condolentes, conhecidos, como eu, sem expressão alguma que denunciasse qualquer tipo de sentimento e os curiosos, aqueles que passam por perto, veem muitos carros e pessoas aglomeradas e chegam logo para saber quem foi a nova vítima da agourenta, e por quais razões está lá, gelado sobre os suportes de ferro, aquele ser.
Esses últimos são os incumbidos de espalhar a todos os cantos, tudo sobre a situação do desencarnado. Qual era a idade, com quem estava casado, onde trabalhava, porque se deu a “passagem”.... Enfim, esses às vezes informam demais a outros, que logo à frente deformam a história e acabam por gerar confusões, principalmente quando a cidade é pequena e muitos conhecem o morto. O que há de sabor nesse ato de passar adiante tão ruim notícia¿ Por que o ser humano sente prazer em lidar com emoções tão ruins¿ De onde vem essa gana de ser o primeiro a dar a grande nova, mesmo que seja uma nova tão mórbida¿
E quem está ali, estático dentro daquela caixa que doravante será sua cama, nada tem de participação na vida desses seres que noticiam sua partida. Mas eu observei aqueles lábios pálidos dos que pensam estar vivos, balbuciando coisas nos ouvidos alheios, o que não pareciam ser orações para encaminhar a alma da cidadã deitada ali. Cheguei até a ouvir alguns assuntos irrelevantes nesse momento, como o preço do grão que move o município em que moramos.
Depois de tanto olhar o mundo ao meu redor naqueles longos momentos, lembrei-me ainda de um detalhe realmente importante: aquela ex-colega de trabalho seria lembrada ali e talvez por mais alguns dias, meses, quem sabe, pelas pessoas mais próximas, mas a cidade a esquecerá amanhã. O que ela fez de importante para ajudar a bom andamento do trabalho burocrático no município não será lembrado, pois outra pessoa já estará ocupando seu lugar no emprego, e talvez desempenhe tão bem quanto ou até inove as atividades naquela função. Ela realmente é dispensável, como eu, como você, como todo ser humano que passa por esse planeta e não deixa seu nome carimbado nos livros didáticos. Como toda gente “pequena”, humilde , que desempenha sua função sem algum ato de heroísmo digno, aos olhos do povo, de reconhecimento público. E que todos sabemos que não deixa de ser herói por isso, pois um dia certamente foi um grande herói em vida, por ter sido pai, ou mãe, ou bom filho, ou bom amigo, ou o grande amor de alguém, ou por ter ajudado um idoso a atravessar a rua, ou cedeu sua cadeira no ônibus lotado para a mulher q trazia uma vida no ventre, ou por ter dado o ombro para alguém chorar pela morte de um ente querido Todos fomos heróis um dia, porém seremos esquecidos, assim como essa senhora de hoje e tantas outras pessoas que se foram em milhões de cidades e situações diferentes nesse mesmo momento.
Ela, a “passageira” de hoje, seremos nós amanhã. Sem vida, sem identidade em outro plano, sem história, sem nome nos livros, sem coisa nenhuma, que não seja a incerteza do que é que vem depois daquilo que muitos julgam ser o descanso eterno, ela, a “incombatível”.


terça-feira, 1 de setembro de 2009

Ah, Clarice...Clarice...


"Meus pais me perdoaram por eu ter nascido. Eu não." Clarice Lispector