quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Crônica da Morte


Toda vez que é noticiada a morte de alguém, muitos põem-se, naturalmente, a refletir sobre os muitos mistérios que acompanham a caveira empunhando uma foice.
Foi no velório de uma colega de trabalho, não muito íntima minha, que pude sossegadamente analisar alguns acontecimentos esquisitos que nos trazem esses momentos fúnebres.
Sentada numa cadeira fria da capela mortuária, a certa distância do caixão, para não correr riscos de olhar de vez em quando para a figura ida que ali se punha na horizontal, observei os transeuntes. Familiares chorando, amigos entristecidos e condolentes, conhecidos, como eu, sem expressão alguma que denunciasse qualquer tipo de sentimento e os curiosos, aqueles que passam por perto, veem muitos carros e pessoas aglomeradas e chegam logo para saber quem foi a nova vítima da agourenta, e por quais razões está lá, gelado sobre os suportes de ferro, aquele ser.
Esses últimos são os incumbidos de espalhar a todos os cantos, tudo sobre a situação do desencarnado. Qual era a idade, com quem estava casado, onde trabalhava, porque se deu a “passagem”.... Enfim, esses às vezes informam demais a outros, que logo à frente deformam a história e acabam por gerar confusões, principalmente quando a cidade é pequena e muitos conhecem o morto. O que há de sabor nesse ato de passar adiante tão ruim notícia¿ Por que o ser humano sente prazer em lidar com emoções tão ruins¿ De onde vem essa gana de ser o primeiro a dar a grande nova, mesmo que seja uma nova tão mórbida¿
E quem está ali, estático dentro daquela caixa que doravante será sua cama, nada tem de participação na vida desses seres que noticiam sua partida. Mas eu observei aqueles lábios pálidos dos que pensam estar vivos, balbuciando coisas nos ouvidos alheios, o que não pareciam ser orações para encaminhar a alma da cidadã deitada ali. Cheguei até a ouvir alguns assuntos irrelevantes nesse momento, como o preço do grão que move o município em que moramos.
Depois de tanto olhar o mundo ao meu redor naqueles longos momentos, lembrei-me ainda de um detalhe realmente importante: aquela ex-colega de trabalho seria lembrada ali e talvez por mais alguns dias, meses, quem sabe, pelas pessoas mais próximas, mas a cidade a esquecerá amanhã. O que ela fez de importante para ajudar a bom andamento do trabalho burocrático no município não será lembrado, pois outra pessoa já estará ocupando seu lugar no emprego, e talvez desempenhe tão bem quanto ou até inove as atividades naquela função. Ela realmente é dispensável, como eu, como você, como todo ser humano que passa por esse planeta e não deixa seu nome carimbado nos livros didáticos. Como toda gente “pequena”, humilde , que desempenha sua função sem algum ato de heroísmo digno, aos olhos do povo, de reconhecimento público. E que todos sabemos que não deixa de ser herói por isso, pois um dia certamente foi um grande herói em vida, por ter sido pai, ou mãe, ou bom filho, ou bom amigo, ou o grande amor de alguém, ou por ter ajudado um idoso a atravessar a rua, ou cedeu sua cadeira no ônibus lotado para a mulher q trazia uma vida no ventre, ou por ter dado o ombro para alguém chorar pela morte de um ente querido Todos fomos heróis um dia, porém seremos esquecidos, assim como essa senhora de hoje e tantas outras pessoas que se foram em milhões de cidades e situações diferentes nesse mesmo momento.
Ela, a “passageira” de hoje, seremos nós amanhã. Sem vida, sem identidade em outro plano, sem história, sem nome nos livros, sem coisa nenhuma, que não seja a incerteza do que é que vem depois daquilo que muitos julgam ser o descanso eterno, ela, a “incombatível”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário