quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

DE TUDO FICOU UM POUCO...

De tudo ficou um pouco...
Ficou um pouco do cheiro almiscarado do corpo.
Do brilho da luz que cega na neve.

É preciso proteger os olhos de muita claridade,
Entretanto alguns pagam para ver.
Vi e ficou um pouco da cegueira
Que toma todo ser humano em alguma parte da vida.

Sem ensaios, sem flores, sem sonhos...
Ficou um mapa de cicatrizes espalhadas pela aura.

CORUJA

O pio da coruja ecoa estridente pelo descampado
Olhos atentos aos movimentos do mundo
Filhotes a proteger. 

Pios que assustam, mas atraem.
Presságio de morte? 
Dotadas de vida que as trazem.

Paradoxal. Ou não.
Apenas mais uma ave na imensidão.




quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

LA VITA

E não é às vezes que dói a vida
É quase todo dia.
Uma dose de manhã, uma à tarde e uma à noite.

O doutor já disse que quando se sente um órgão
É porque algo está problemático.

Acho que a vida anda meio enferma... 


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

RESIGNAÇÃO

“[...] o leitor é uma entidade que pede para ser enganada; quem abre um livro não o faz impunemente.” 
 JOCA REINERS TERRON

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

CAIXA DE PANDORA

Ao menos três vezes por dia ela atravessava seu jardim até a caixa de correios colada ao muro. Abria-o. Certificava-se do vazio. Voltava a seus poucos afazeres.
Como num ritual, ontem ela fez o mesmo. Olhou. Vazio. Voltou.
Anteontem, idem. Mas anteontem era domingo. Qual a possibilidade de alguém depositar algo em sua caixa de correios em um dia de domingo? Nada. Não havia nada. “Com o advento da internet, as pessoas tornaram-se insensíveis!”, pensou.
Às vezes era acometida por um saudosismo tão brutal do tempo das cartas, que sua visita à caixinha desgastada pelo tempo, colada ao velho muro, passava de três vezes por dia. Em alguns raros dias era tomada por uma espécie de melancolia, então ia até a caixa uma vez só. Esses dias eram aqueles nos quais ela se permitia vinte e quatro horas de racionalidade.
Vez ou outra, abria lentamente a tampa da caixinha e visualizava uma ponta branca de papel. Não a abria toda. Corria à cozinha, colocava um champagne no gelo e rumava para a caixinha dos desejos. Ela sabia sentir o momento. Abria lentamente a tampa, como quem abre seu alvará de soltura. Tomava posse do envelope com todo cuidado, levava-o para dentro e o depositava sobre a mesa. Sentava-se, estourava o champagne, enchia o copo e degustava o líquido gasoso, com os olhos grudados no envelope. Ela sabia da falta de importância naquilo. Ou era uma conta, ou propaganda dos insistentes comércios de sempre. Tinha ciência de que o conteúdo não a agradaria. Mas era um envelope. Necessitava de todo ritual merecido por ter adentrado sua caixa de cartas.
A vazia vida se resumia à caixa. Não conhecia nenhum entregador dos correios, entretanto, admirava-os. Eram dignos do respeito dela.
Aposentada, inútil para o mundo, esquecida pelos poucos familiares que lhe restavam, guardava-se em sua insignificância. Não saía. Telefonava para o supermercado do bairro solicitando o necessário. Recebia tudo em casa. Renunciou a todo contato humano.
Hoje ela foi duas vezes à caixa, e ainda são dez horas da manhã. Ela não sabe, mas quando for novamente, encontrará em sua caixa de pandora um envelope pardo sem remetente. E até que consiga abri-lo, talvez já seja noite, tão feliz ficará ao se deparar com seu nome escrito à tinta vermelha, cor de sangue. Certamente tomará o champagne inteiro olhando para o envelope, não só um copo. Observará a palavra “urgente” escrita no lado do destinatário bem abaixo de seu endereço, e aguardará muito até não suportar mais a ânsia de ler seu conteúdo. Pegará a espátula, e cuidadosamente trará à luz aquela folha branca com poucas palavras. Notará que nela está escrita, à mão, parte do poema de Mário de Sá-Carneiro: “Eu não sou eu/ nem sou o outro./ Sou qualquer coisa de intermédio [...]”. Refletirá sobre essas palavras tão misteriosas e as sentirá lendo em voz alta. Lerá de novo e de novo. “Que lindo!” - pensará. Mas sua tez irá se franzir quando depois de tantos minutos parada nestes versos, perceber que há algo mais, escrito bem embaixo na folha, com letras minúsculas, quase imperceptíveis. São de cor cinza. Ela pegará a lupa, pois os óculos não abarcarão as palavras de forma inteligível. E lerá com um misto de aflição e alívio: “Este é seu último dia. Só irá à sua caixa de pandora até a meia-noite de hoje. Aproveite!”
À meia-noite e um minuto estarei lá para dar cabo de sua vacuidade, uma vida desgastada e infeliz.



terça-feira, 30 de setembro de 2014

GOZO

Desejo louco de escrever.
No entanto, os dedos não se entrelaçam com as palavras.
Falar de romantismo é tão blasé.
Não. Não gosto de romantismo.
Meu desejo palpita com os pés no chão.
Definitivamente não combinamos, portanto.
Calar é a melhor saída
quando tudo o que se tem a dizer é nada.

Mas insisto, repare, a vida é romântica.
Viver é uma espécie de gozo.
Não o gozo acompanhado do gosto ocre de vazio.
Mas aquele tântrico, saboreado nos mínimos movimentos.

Porque a vida é breve, como o gozo,
Contudo, pode ser sentida com delicadeza.
E ter-se a impressão de que é eterna,
Apesar da certeza de sua efemeridade.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

MEDO

"Permitam-me afirmar a minha crença inabalável de que a única coisa que devemos temer é o próprio medo." 
Franklin Delano Roosevelt 
(Discurso de Posse, 1933)


Reitero meu medo de ter medo.
E o tenho sempre...

terça-feira, 23 de setembro de 2014

MENTIRA NÃO PERMITIDA

"Eu posso mentir quanto eu quiser, mas não para mim mesmo. Essa mentira não é permitida [...]." 
Cristovão Tezza
(O FOTÓGRAFO)

SEM REGRESSO

"- Tens medo de fazer amor comigo?
- Tenho.
- Por eu ser preta?
- Não, não é por seres preta que tenho medo.
- Tens medo que eu esteja doente...
- Sei prevenir-me.
- E por que, então?
- Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti."
MIA COUTO (VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABOS)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O IMORTAL

"Ser imortal é coisa comum. Com exceção dos homens, todas as criaturas são imortais, pois ignoram a morte. O que é divino, incompreensível, é saber que se é imortal. [...] Tudo, dentre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perigoso. Dentre os Imortais, de outro lado, todo ato (e todo pensamento) é o eco de outros que o precederam no passado, sem nenhum início visível, ou constante presságio de outros que, no futuro o repetirão a um grau vertiginoso. [...] Nada pode acontecer apenas uma vez, nada é preciosamente precário." Jorge Luis Borges (O IMORTAL)

Quem quer ser imortal? Nada além da morte assusta mais. A vida sim, essa nos mata a cada átimo.

RATOS, HUMANOS, RATOS...

Hoje pela manhã surgiu um pequenino camundongo no meu ambiente de trabalho.
Inofensivo, aparentemente. E desprotegido. Corria para se esconder nos recônditos secretos da grande sala em que eu me encontrava com outros colegas.
Não fosse seu alto e lendário poder de assustar elefantes, poderia ser bonitinho até.
Lendas com elefantes. Com gente não. Alguns possuem fobia. Abrigam-se onde podem, gritam, correm, fazem escândalo.
A mim, coube a mesa. De cima dela, meus olhos acompanhavam o pequeno roedor desesperado em busca de proteção. Eu, idem. Na hora não me ocorreu que ele poderia subir na imensa mesa e se deleitar correndo sobre ela como fazia pelo chão, igualando-se a mim em cima.
Embrenhou-se entre caixas e livros e afins que ocupam espaços na sala. Sabe-se lá onde.
Ninguém mais o encontrou. Estamos à mercê de um bicho que não traz grande malefício ao ser humano. Não sei se voltarei a trabalhar amanhã.
Local de ratos. Meu trabalho. Ratos, humanos, ratos. Humanos, ratos, humanos.
Provavelmente ele tenha olhado para o meu desespero sobre a mesa e sentindo pena, elucubrou:
- Pobre criatura... Vive entre bichos pestilentos muito mais prejudiciais que eu...
ou
- Pobre criatura... Não passa de um rato de esgoto e faz cena quando me vê...
Seja lá o que tenha pensado o pequenino camundongo, fugindo de ser caçado por alguns poucos corajosos na sala, deve ser bem mais feliz do que muita gente que anda às pompas usando sua máscara cotidiana. 

domingo, 31 de agosto de 2014

SARGAÇOS SOMOS

“Tudo o que faço ou medito 
Fica sempre na metade. 
Querendo, quero o infinito. 
Fazendo, nada é verdade. 

Que nojo de mim me fica 

Ao olhar para o que faço! 
Minha alma é lúcida e rica, 
E eu sou um mar de sargaço – 

Um mar onde boiam lentos 

Fragmentos de um mar de 
além... 
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem”. 

Fernando Pessoa

Acostumemo-nos, pois, ao mar de sargaço que somos
De desejos incessantes
E pensamentos inconfessáveis.



DEPOIS...

Eis que temos nos preocupado tanto em preservar nosso lugar para depois da morte, que nos esquecemos de viver na terra. Olhamos demasiadamente para o eterno e deixamos passar por nós as oportunidades de sermos simplesmente humanos na terra. Esquecemo-nos da vida tão perene. Hoje cá, amanhã, outro dia, quem saberá? E que garantias há sobre o depois? Necessário se faz disseminar o bem, sem esperar por retribuições divinas. "Estamos sós e sem desculpas." 

"Não deixeis a vossa virtude fugir das coisas terrestres e adejar contra paredes eternas. Ai! Tem havido sempre tanta virtude extraviada! 
Restituí, como eu, à terra a virtude extraviada. Sim; restitua-a ao corpo e à vida, para que dê à terra o seu sentido, um sentido humano." Assim Falava Zaratustra



quarta-feira, 20 de agosto de 2014

DE AMOR E DE ANJOS

"Todos os dias quando acordo, vou correndo tirar a poeira da palavra amor." Clarice Lispector
Se Clarice e Macabéa acreditavam em anjos e no amor, quem sou eu para dizer que não existem??? E que tomem conta do mundo. Amém!!!

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

ARTE

" [...] eis que a mente é uma caixa ilimitada, a não ser por nossas estruturas internas, que a arte serve justamente para romper."  Sérgio Sant'anna (Um Crime Delicado)
Foto: Pigmaleão e Galateia - Jean Léon Gérôme

A SOCIEDADE DO CONSUMO

" [...] O grande problema é que, sendo mercadoria, o consumidor consome a si mesmo, sua vida, seu cotidiano. 'Consome-se' trabalhando para poder consumir o que o mercado apresenta e acaba por esquecer que ele é mercadoria primeira desse sistema. Portanto, nossa sociedade é insustentável, pois é contraditória, destrói a si mesma, gerando indivíduos frustrados, viciados em shoppings, doentes por consumir.[...] "Matêus Ramos Cardoso (Revista Filosofia)

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

SOBRE-HUMANO

"[...] pode-se fazer a guerra neste mundo, macaquear o amor, torturar o semelhante, frequentar as colunas dos jornais ou simplesmente falar mal do vizinho enquanto se tricota. Mas, em certos casos, continuar, apenas continuar, eis o que é sobre-humano. " Albert Camus (A QUEDA)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

INCONSTÂNCIA

É por ser tão instável que devo desconfiar de mim todos os dias. O que ontem me parecia tão certo como os rios que deságuam no mar, apesar dos obstáculos que encontram, torna-se tão duvidoso quanto a hora última de vida.
A inconstância fere. "[...] Para ser feliz, é preciso não se envolver demais com os outros." Mas como não se envolver? Que "venenos de Deus ou remédios do Diabo" encontraríamos na caminhada para nos livrarmos desse mal? O mal de não pertencer a si mesmo...


A QUEDA DA MÁSCARA

“[...] Mas sabe por que somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há obrigações. Deixam-nos livres, podemos dispor do nosso tempo, encaixar a homenagem entre o coquetel e uma doce amante: em resumo, nas horas vagas. Se nos impusessem algo, seria a memória, e nós temos a memória curta. [...]” Albert Camus (A QUEDA)

sábado, 9 de agosto de 2014

... E HÁ TANTAS COISAS QUE REALMENTE NÃO ME INTERESSAM...

"De qualquer forma, eu talvez não estivesse certo do que realmente me interessava, mas estava totalmente certo do que não me interessava." Albert Camus (O ESTRANGEIRO)
... E há tantas coisas que realmente não me interessam, mas algumas pessoas não desconfiam de que não me importo se elas acreditam ou não em algo. Eu não acredito e não me interessam as crenças alheias. Para relembrar "Engenheiros": "Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem...".

ESTAMOS TODOS CONDENADOS À MORTE...

"[...] Quando acabou, dirigiu-se a mim, tratando-me de 'meu amigo': se me falava desta forma, não era por eu estar condenado à morte; na sua opinião, todos nós estávamos condenados à morte. [...]." Albert Camus (Livro: O ESTRANGEIRO)
E NÃO ESTAMOS DE FATO, COMO SUGERIU O CAPELÃO?

POR QUE ESCREVER...

"[...] A poeta portuguesa Sophia de Mello Brayner contava histórias para que seus filhos doentes adormecessem. Escrevo para adormecer o mundo que me parece doente. E assim invento histórias." Mia Couto (Em entrevista)

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

RAKUSHISHA

"Deve haver como me perder, de algum modo. Deve haver como me perder para encontrar aquele lugar no mundo que nunca antes foi pisado antes, um território realmente virgem. Deve haver um modo, quem sabe, de partir em viagem e não regressar mais. Reduzir-se à mochila que vai às costas e a umas poucas mudas de roupa. Reduzir-se ou agigantar-se, a uma ausência de casa própria e cidadania, [...]. Levantar os pés para caminhar, estudar a bússola e o mapa, mas randomizar todos os gestos. Traçar uma reta, menor caminho entre dois pontos, e picotá-la com a tesoura, apagar trechos com a borracha, dissimular outros com o esfuminho, despistá-la em curvas. De tal modo a esquecer que um dia chegou a ser uma reta, dotada de ponto final. De objetivo. Desobjetivar-se. Esse, o território realmente virgem - o único. Assumir como um sentido a falta de sentido da vida. Em todos os sentidos. . ADRIANA LISBOA (RAKUSHISHA)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

ARTE LITERATURA

"Porque a arte faz o homem acreditar em si mesmo. E se sentir melhor. A arte engrandece o homem." Bernardo Carvalho (Livro: REPRODUÇÃO)

Viva a ARTE LITERATURA!!!


DIVERSIDADE

"[...] a diversidade é um reservatório de adaptabilidade. Quanto mais diferença houver, mais chances de nos adaptar ao inesperado." Bernardo Carvalho (Reprodução)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

ESPELHOS - EDUARDO GALEANO

Os espelhos estão cheios de gente,
Os invisíveis nos veem
Os esquecidos se lembram de nós
Quando nos vemos, os vemos
Quando nos vamos, se vão?
(In: Espelhos - Galeano)

INCÓGNITA

Conheci Bach muito cedo. E Mozart e Beethoven e Haydin e Chopin e Schubert. 
Não. Não descendo de uma família culta. Tampouco de dotes. Dos doze filhos do meu avô, apenas dois fizeram o curso superior. A outra parte, tirando as duas gêmeas caçulas que terminaram o colegial (como era chamado na época) e tio Daniel que entrou para o “tiro de guerra” e terminou também, os outros aprenderam a ler e escrever. Estava bom para uma família que precisava arar a terra incansavelmente para sua sobrevivência.
 Na infância, nunca entendi bem o que significava a palavra reencarnação, entretanto algo me dizia desde sempre que o tio Daniel era uma reencarnação de Bach. Os grandes clássicos da música me foram apresentados por ele. Sentávamo-nos em seu quarto para ouvi-los. Eu, pelos idos de 9, 10 anos. Eram grandes vinis com capas extraordinárias. Enquanto ele punha aqueles bolachões pretos na vitrola, eu viajava olhando as capas dos discos. Um deles, como se estivesse diante de meus olhos agora, trazia um encarte diferente dos outros, por ser duplo. Com páginas de ilustração, meus olhinhos infantis adentravam aquelas paisagens antigas e me punham dentro dos quadros. Meu tio se sentava a um canto, eu em outro. Em silêncio, ficávamos ali por longos minutos ouvindo aquele som que me soava tão familiar. De onde? Olhávamo-nos às vezes entre uma nota mais curta e outra mais longa ou mais cheia ou mais pausada. Quando todos os instrumentos paravam e apenas um tocava, sorríamos um para o outro. Era um riso de delícias. Ele parecia voar com as notas. No fundo, apesar de nossas companhias silenciosas, sabíamos que éramos dois solitários. Tio Daniel e toda carga clássica que trouxe na alma foi anulado pela religião. Sufocado em regras que fizeram dele apenas um, entre tantos iguais que tocam a mesmíssima coisa em um templo. Minha admiração por ele não era só porque ele punha exatamente o que eu amava ouvir, mas porque tocava também acordeão, piano, violão, violino e sabe-se lá o que mais tocaria se pusessem nas mãos dele. Para compensar a nulidade em que se transformou como Ser, fabrica instrumentos nos fundos de sua casa, sob encomenda. Violinos, violoncelos de primeira qualidade. A tristeza que me toma agora é porque ouço a 9ª sinfonia de Beethoven e imagino ele munido de qualquer instrumento fazendo isso ou mesmo regendo essa orquestra que toca agora. Não sei se ele foi feliz algum dia. Ou se será. Vive uma crise constante de ansiedade que lhe provoca trancos no coração clássico que carrega, que uma hora não suportará mais ser reprimido por tantos anos e parará deixando para trás toda uma vida de música que poderia ter sido e não foi.
Queria não me lembrar, mas como considera Gaston Bachelard,  “a memória é um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos nossos devaneios de criança solitária.”

Não fôssemos seres solitários desde muito tempo, talvez ele tivesse se encontrado e eu também nesta larga vida que nos aponta tantos caminhos. Hoje conheço bem o significado da palavra reencarnação, mas não acredito nisso e em quase nada mais. Contudo, confesso, tio Daniel será uma incógnita para mim até que eu feche para sempre os olhos.


sexta-feira, 25 de julho de 2014

DISCÍPULA DA VIDA

"Não tenho tempo para choradeira, o agora urge. Tenho que pisar pedras como se fossem pétalas", disse a uma amiga. Ela riu. Rimos. 
Quando parece que posso prostrar-me e finalmente jorrar todo líquido quente preso no canal lacrimal, vem outra pancada da vida avisando: "Levanta-te e anda! Você não tem fé e caminha sozinha. Portanto faça valer cada minuto nesta carne que compõe seu corpo esquálido e falível." Sou carne, mas preciso caminhar como se fosse composta por pedras. 
Levanto-me, então, e ando como uma verdadeira discípula da vida. Desta que não nos permite outra chance.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

ÉRAMOS DEUSES ATÉ QUE NOS CONHECERAM

Sinto um desejo enorme de escrever um texto sobre pessoas ou uma cúpula que se pareciam deuses antes de serem conhecidas. É realmente asquerosa a forma de poder que alguns conseguem exercer sobre os mais frágeis. Seriam imortais, caso um ou outro não enxergasse a nojenta face por trás das máscaras que carregam. Sob as máscaras, vácuo, vazio, oco. Falta. No fundo, esses imortais são tão fracos e vulneráveis, que qualquer palavra mais pesada consegue atingir seu âmago, chegando não só às suas cascas, mas a seus íntimos todos. Ferem o outro para se sentirem melhores. Assim conseguem aliviar seus egos da falta de amor próprio.
Sem nomes. Sem identidades. São ninguém sem os créditos de seus séquitos indefesos.
Faltam-me palavras. Vazio. Oco. Vácuo. Nada. Falta.
Um texto um dia poderia nascer. O título já brotou.
Quem sabe um dia...

terça-feira, 22 de julho de 2014

GAZA NÃO É FEITA DE HAMAS


Muitos judeus foram assistir, satisfeitos, à condenação de Cristo há dois mil anos.
Milhares de judeus sucumbiram no holocausto aterrorizante de quarenta e cinco.
Alguns judeus hoje juntam-se, no alto de um morro,
para apreciarem os bombardeios em Gaza nos fins de tarde.
De geração em geração, judeus repetem o jugo de perseguirem
e serem perseguidos.
Aprende-se a intolerância com os pais.
A intolerância é herança. Triste herança!

"[...] se os verbetes do meu avô podem ser resumidos na frase como o mundo deveria ser, que pressupõe uma ideia oposta do mundo como de fato é, eu duvido que meu pai não soubesse disso antes da leitura do texto: que para o meu avô esse mundo real significava Auschwitz, e se Auschwitz é a maior tragédia do século XX, o que pressupõe a maior tragédia de todos os séculos, já que o século XX é considerado o mais trágico de todos os séculos, porque nunca antes tanta gente foi bombardeada, fuzilada, enforcada, empalada, afogada, picada, eletrocutada antes de ser queimada ou enterrada viva, dois milhões no Camboja, vinte milhões na União Soviética, setenta milhões na China, centenas de milhões somando Angola, Argélia, Armênia, Bósnia, Bulgária, Chile, Congo, Coreia, Cuba, Egito, El Salvador, Espanha, Etiópia, Filipinas, Haiti, Honduras, Hungria, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Líbano, Líbia, México, Mianmar, Palestina, Paquistão, Polônia, Portugal, Romênia, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão, Tchecoslováquia, Tchetchênia, Tibete, Turquia e Vietnã, cadáveres que se acumulam, uma pilha até o céu, a história geral do mundo que é tão somente um acúmulo de massacres que estão por trás de qualquer discurso, qualquer gesto, qualquer memória, e se Auschwitz é a tragédia que concentra em sua natureza todas essas outras tragédias também não deixa de ser uma prova da inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares - diante da qual não há nada o que fazer, o que pensar, nenhum desvio possível do caminho que meu avô seguiu naqueles anos, o mesmo período em que meu pai nasceu e cresceu e jamais poderia ter mudado essa certeza." (DIÁRIO DA QUEDA - MICHEL LAUB - p. 133/134)



domingo, 20 de julho de 2014

INSONE

Ah, se da insônia brotassem ideias...
Mas não. É cruel.
Está na sua essência ser.
Há algo de insano na insônia.
Proíbe-nos de sonhar e rouba-nos 
todas as brilhantes ideias
as quais corremos atrás
 todos os dias.
"A insônia não é a falta de sono,
é o excesso de ansiedade."

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

Viva o grande mestre Galeano.

sábado, 19 de julho de 2014

BICHOS

"O animal dentro de nós não tem rosto."
Desconhecemo-nos todos os dias...

sábado, 12 de julho de 2014

FELICIDADE

"Mas a neblina é um pouco como a felicidade, 
só se vê de longe, 
nunca de dentro."
J.P. Cuenca

segunda-feira, 7 de julho de 2014

NORMOSE

"Normose, a doença da normalidade. Pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, outras doenças e morte. Uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente, e age como a maioria. É um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação." (Site: Pragmatismo Político)

É necessária uma avaliação diária para ter a certeza de que ainda não foi acometido por essa doença horrível. 
Ps: É contagioso... Para quem está sem imunidade, claro...



PARADOXO

“Não se pode regular sua vida pela procura do bem, 
a felicidade de um será sempre a infelicidade do outro.” 
Tzvetan Todorov 
MAKTUB, creio eu...

sábado, 5 de julho de 2014

CONVENÇÕES

As convenções são nojentas.
Pensamentos mumificados.
Patologia coletiva.
Visão neutralizada.
Mundo sem cores.
Desejos não vividos.
Doença. "Mal desnecessário".
As convenções interrompem,
Matam sonhos.
Violentam a fantasia.
Atropelam quereres.
Quadrado. Gaiola.
Cárcere. Caminhos fechados.
A vida é breve demais
para que a preenchamos
com convenções.

Como disse o poeta:
"As convenções são o cancro do mundo."

sexta-feira, 4 de julho de 2014

MORTE AOS ORÁCULOS

Se cada um de nós tivesse um oráculo particular
Poderíamos nos preparar para as temeridades da vida,
Mesmo as piores.
Entretanto, estamos ao sabor do vento
Na brisa de uma vida tão incerta quanto assustadora.
Hoje estou cá, amanhã quem saberá?
"Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos",
e soubesse do meu dia de amanhã, eu nada seria.
Ainda que eu tivesse um oráculo particular,
E este quisesse me alertar sobre a vida...
Eu não me bastaria.
Morte aos oráculos!!!


ENTREVISTA: EU NÃO SOU TRAFICANTE

Nos rincões do Paraguay. Entrevista com um jovem rapaz, maltrapilho, sujo, mãos calejadas:
- Há muito tempo você trabalha no cultivo da maconha? - repórter.
- Faz bastante tempo...
- Já o prenderam? A polícia já o levou? - repórter.
- Sim. Me amarraram no pau e perguntaram de quem era a plantação, quanto tinha, como levava, eu era "de menor"...
- E você respondeu? - repórter.
-Não. Não podia falar. 
- O que você acha que aconteceria se tivesse dado as informações sobre o patrão? - repórter.
- ... Aí ficaria difícil, né? - Eufemismo para a morte.
- Você se considera traficante? - repórter.
- Sou não. Sou um trabalhador como outro qualquer na roça. Traficante é quem tem o dinheiro. Eu só trabalho. Não sou traficante!
Essa afirmativa nos põe em reflexão. Se não fosse ele a cultivar, seria outro trabalhador pobre que também receberia uma miséria em troca do trabalho árduo de plantar, colher, secar, embalar e deixar tudo pronto para o despacho. Como em uma roça de fumo. Traficante é aquele que fica com o grosso dinheiro oriundo do comércio disso. Ele é um trabalhador apenas, nada mais.




O DUPLO

- Eu te desconheço!" - ela ouviu de repente.
"Desconheço as duas pessoas que moram dentro de você...
Como podem habitar dois seres tão diferentes dentro de um só ser?"
- Pode! É o monstro humano que alimentamos às vezes. 
Aquele do qual tentamos nos livrar e não conseguimos...
Como se fosse parte integrante de nós. O duplo.
E o único remédio é matá-lo quando não somos capazes 
de nos desvencilhar dele.
E para exterminá-lo, necessário se faz matar os dois.


terça-feira, 1 de julho de 2014

MENTEM-ME...

Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente. [...]

Affonso Romano de Sant'anna
A pior mentira é aquela
que contamos a nós mesmos
inúmeras vezes, na vã tentativa
de sofrermos menos.
Mentiram-me e minto-me.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

SOMOS OBRAS DE FICÇÃO

“A memória é a lembrança sob um único ponto de vista, no caso o do narrador do romance. [...] Todos somos construídos pelas mentiras que contamos a nós mesmos e nesse aspecto 
todo adulto é uma obra de ficção.” 
JOCA REINERS TERRON
Somos feitos de mentiras 
sobre nós mesmos...???

sábado, 28 de junho de 2014

SAUDADE


A saudade é uma tatuagem na alma.
Só nos livramos dela perdendo um pedaço de nós.
MIA COUTO

ALGUÉM DISSE...

A culpa atravanca tantos caminhos...
"Às vezes cansa. Os ombros pedem descanso."
E nunca conseguem descansar...
Como se segurassem a vida pesada sempre.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

CARTA A JUDAS

Ei, caro Judas...
Sabia que ainda o "malham" no sábado de aleluia?
Tem um monte de gente que o critica dois mil anos depois,
mas não perde a chance de ganhar 
um quinhão para se dar bem. 
Você tem que vir e explicar que o que fez, 
estava escrito que faria.
Como seria a história se não tivesse obedecido
a imposição do seu Pai?
Você foi pressionado, parece-me.
Poderia ter escolhido não fazer. 
Mas fez. Problema seu. Pagou.
As pessoas dos séculos que vieram não entenderam.
No séc. XXI ainda não compreendem bem isso.
Querem seguir seu exemplo, e o superam muito.
O ouro hoje é de quantidade imensurável.
Suas trinta moedinhas são nada, 
perto do vil metal a que se apegam seus seguidores. 
Hoje seriam seus chefes.
Você não entende nada de barganha e ganância, Judas.
Precisa vir aprender aqui. Em muitas igrejas.
Você não imagina o quanto se ganha 
em nome do homem que você "traiu".
Músicas, shows, bênçãos recebidas, souvenires...
Precisa lembrar-lhes de que você beijou porque amava,
devolveu as moedas, arrependeu-se (tarde demais)
e cometeu suicídio pela vergonha do que fez.
Hoje, nestes casos, não o cometem.
Se o fizessem, seria porque perderam o metal,
e o vazio do bolso lhes sufocou o pescoço.
Mas não. Não cometem suicídio.
Não têm por que. Prosperam muito.
Tudo em nome Daquele que você trocou
por trinta malditas moedas de prata.
Sinto muito, Judas. 
Você não beira aos pés dos novos mercadores de Jesus.
Se visse, iria suicidar-se de novo.


DAS IMPUREZAS

Nosso amor é impuro 
como impura é a luz e a água 
e tudo quanto nasce 
e vive além do tempo.

Mia Couto

quinta-feira, 26 de junho de 2014

...

"Ainda bem que sempre existe outro dia. 
E outros sonhos.
E outros risos. 
E outras pessoas. 
E outras coisas..."
Clarice Lispector
E outros mundos...
Assim seja!!!