Conheci Bach muito cedo. E Mozart e Beethoven e Haydin e Chopin e Schubert.
Não. Não descendo de uma família culta. Tampouco de dotes. Dos doze
filhos do meu avô, apenas dois fizeram o curso superior. A outra parte, tirando
as duas gêmeas caçulas que terminaram o colegial (como era chamado na época) e tio
Daniel que entrou para o “tiro de guerra” e terminou também, os outros
aprenderam a ler e escrever. Estava bom para uma família que precisava arar a
terra incansavelmente para sua sobrevivência.
Na infância,
nunca entendi bem o que significava a palavra reencarnação, entretanto algo me
dizia desde sempre que o tio Daniel era uma reencarnação de Bach. Os grandes
clássicos da música me foram apresentados por ele. Sentávamo-nos em seu quarto
para ouvi-los. Eu, pelos idos de 9, 10 anos. Eram grandes vinis com capas
extraordinárias. Enquanto ele punha aqueles bolachões pretos na vitrola, eu
viajava olhando as capas dos discos. Um deles, como se estivesse diante de meus
olhos agora, trazia um encarte diferente dos outros, por ser duplo. Com páginas
de ilustração, meus olhinhos infantis adentravam aquelas paisagens antigas e me
punham dentro dos quadros. Meu tio se sentava a um canto, eu em outro. Em
silêncio, ficávamos ali por longos minutos ouvindo aquele som que me soava tão
familiar. De onde? Olhávamo-nos às vezes entre uma nota mais curta e outra mais
longa ou mais cheia ou mais pausada. Quando todos os instrumentos paravam e
apenas um tocava, sorríamos um para o outro. Era um riso de delícias. Ele
parecia voar com as notas. No fundo, apesar de nossas companhias silenciosas,
sabíamos que éramos dois solitários. Tio Daniel e toda carga clássica que
trouxe na alma foi anulado pela religião. Sufocado em regras que fizeram dele
apenas um, entre tantos iguais que tocam a mesmíssima coisa em um templo. Minha
admiração por ele não era só porque ele punha exatamente o que eu amava ouvir,
mas porque tocava também acordeão, piano, violão, violino e sabe-se lá o que
mais tocaria se pusessem nas mãos dele. Para compensar a nulidade em que se
transformou como Ser, fabrica instrumentos nos fundos de sua casa, sob
encomenda. Violinos, violoncelos de primeira qualidade. A tristeza que me toma
agora é porque ouço a 9ª sinfonia de Beethoven e imagino ele munido de qualquer
instrumento fazendo isso ou mesmo regendo essa orquestra que toca agora. Não
sei se ele foi feliz algum dia. Ou se será. Vive uma crise constante de
ansiedade que lhe provoca trancos no coração clássico que carrega, que uma hora
não suportará mais ser reprimido por tantos anos e parará deixando para trás
toda uma vida de música que poderia ter sido e não foi.
Queria não me lembrar, mas como considera Gaston Bachelard,
“a memória é um campo de ruínas
psicológicas, um amontoado de recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada.
Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos
nossos devaneios de criança solitária.”
Não fôssemos seres solitários desde muito tempo,
talvez ele tivesse se encontrado e eu também nesta larga vida que nos aponta
tantos caminhos. Hoje conheço bem o significado da palavra reencarnação, mas
não acredito nisso e em quase nada mais. Contudo, confesso, tio Daniel será uma
incógnita para mim até que eu feche para sempre os olhos.
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