segunda-feira, 28 de julho de 2014

INCÓGNITA

Conheci Bach muito cedo. E Mozart e Beethoven e Haydin e Chopin e Schubert. 
Não. Não descendo de uma família culta. Tampouco de dotes. Dos doze filhos do meu avô, apenas dois fizeram o curso superior. A outra parte, tirando as duas gêmeas caçulas que terminaram o colegial (como era chamado na época) e tio Daniel que entrou para o “tiro de guerra” e terminou também, os outros aprenderam a ler e escrever. Estava bom para uma família que precisava arar a terra incansavelmente para sua sobrevivência.
 Na infância, nunca entendi bem o que significava a palavra reencarnação, entretanto algo me dizia desde sempre que o tio Daniel era uma reencarnação de Bach. Os grandes clássicos da música me foram apresentados por ele. Sentávamo-nos em seu quarto para ouvi-los. Eu, pelos idos de 9, 10 anos. Eram grandes vinis com capas extraordinárias. Enquanto ele punha aqueles bolachões pretos na vitrola, eu viajava olhando as capas dos discos. Um deles, como se estivesse diante de meus olhos agora, trazia um encarte diferente dos outros, por ser duplo. Com páginas de ilustração, meus olhinhos infantis adentravam aquelas paisagens antigas e me punham dentro dos quadros. Meu tio se sentava a um canto, eu em outro. Em silêncio, ficávamos ali por longos minutos ouvindo aquele som que me soava tão familiar. De onde? Olhávamo-nos às vezes entre uma nota mais curta e outra mais longa ou mais cheia ou mais pausada. Quando todos os instrumentos paravam e apenas um tocava, sorríamos um para o outro. Era um riso de delícias. Ele parecia voar com as notas. No fundo, apesar de nossas companhias silenciosas, sabíamos que éramos dois solitários. Tio Daniel e toda carga clássica que trouxe na alma foi anulado pela religião. Sufocado em regras que fizeram dele apenas um, entre tantos iguais que tocam a mesmíssima coisa em um templo. Minha admiração por ele não era só porque ele punha exatamente o que eu amava ouvir, mas porque tocava também acordeão, piano, violão, violino e sabe-se lá o que mais tocaria se pusessem nas mãos dele. Para compensar a nulidade em que se transformou como Ser, fabrica instrumentos nos fundos de sua casa, sob encomenda. Violinos, violoncelos de primeira qualidade. A tristeza que me toma agora é porque ouço a 9ª sinfonia de Beethoven e imagino ele munido de qualquer instrumento fazendo isso ou mesmo regendo essa orquestra que toca agora. Não sei se ele foi feliz algum dia. Ou se será. Vive uma crise constante de ansiedade que lhe provoca trancos no coração clássico que carrega, que uma hora não suportará mais ser reprimido por tantos anos e parará deixando para trás toda uma vida de música que poderia ter sido e não foi.
Queria não me lembrar, mas como considera Gaston Bachelard,  “a memória é um campo de ruínas psicológicas, um amontoado de recordações. Toda a nossa infância está por ser reimaginada. Ao reimaginá-la, temos a possibilidade de reencontrá-la na própria vida dos nossos devaneios de criança solitária.”

Não fôssemos seres solitários desde muito tempo, talvez ele tivesse se encontrado e eu também nesta larga vida que nos aponta tantos caminhos. Hoje conheço bem o significado da palavra reencarnação, mas não acredito nisso e em quase nada mais. Contudo, confesso, tio Daniel será uma incógnita para mim até que eu feche para sempre os olhos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário