segunda-feira, 10 de agosto de 2009

PECADO CAPITAL


“Cada um dos sete pecados capitais carregam seus estigmas, porém não deixam de carregar matizes aos olhos de seu pecador.” 15.04.08

Ainda muito pequena a menina fora introduzida no mundo dos livros. Antes mesmo de aprender a ler e escrever, uma de suas tias lhe dava o prazer da viagem a histórias de todos os gêneros, sem se deslocar de casa. Na verdade saiam sim, pois a tia encilhava um cavalo toda tarde, punha a menina na garupa e saía para cavalgar, ávida por contar os capítulos do que lera naquele dia. A criança aguardava esse momento como se fosse a chegada de um circo.

Se deliciava com cada palavra pronunciada pela moça que a carregava para os contos de todas as mil noites. Conhecera até o grande amor de Ceci e Peri nessa época.

Deitava-se e ficava horas imaginando os amores todos do mundo. Menina sonhadora.

Quando seus avós não tinham muitas ocupações, contavam histórias do folclore brasileiro, em especial as mais assustadoras; das grandes boaiadas levadas durante meses por peões sujos e cansados, que viam sempre alguma assombração; dos cachorros loucos que apareciam embaixo da cama de alguém ou que sempre corriam atrás de transeuntes pelas ruas, com mais freqüência no mês de agosto; e de pessoas que foram para o outro mundo, mas que teimavam em voltar para esse dos vivos, causando arrepios em quem ouvia deles falar.

A garota ia dormir então apavorada, com medo de pôr os pés no chão. Como saberia se não tinha algum cachorro louco escondido embaixo de sua cama, e que de repente com os olhos vidrados a mordesse e ela também ficasse louca, como os avós diziam que acontecia? Menina amedrontada.

Quando aprendeu a ler, rolou pelas leituras encantadas dos contos de fadas, alguns que até já conhecia. Comprava e trocava gibis de seus colegas, escondida de seu pai, pois por causa da religião, não lhe era permitido ler tais pecados. Ela, ingenuamente suscitou a desconfiança de seu pai sobre a “heresia”, quando passou a se trancar em seu quarto por tardes inteiras. Então o genitor descobriu as dezenas de gibis escondidos embaixo do colchão da leitora, e diante do choro incontido da menina fez uma fogueira na calçada com todos aqueles quadrinhos coloridos que a fizeram feliz durante tanto tempo. Menina desiludida.

Lia a bíblia, quando não podia ler outra coisa, adorava as histórias de milagres. Menina religiosa.

E pelos primeiros seis anos de estudo, conheceu e leu o que havia de Coleção Vagalume na biblioteca de sua escola. E tinha muito. Essa fora a melhor obrigação que lhe impusera a professora de Língua Portuguesa, pois agora seu pai não a poderia proibir. Chorou, sorriu, sofreu, questionou-se e viajou com cada personagem. Menina leitora.

Ainda lia a bíblia, quando não tinha outro livro à mão. Menina persistente.

Aos treze, começou a ter sensações estranhas com os romances que fantasiavam lindos casos de amor, em que havia homens e mulheres perfeitos, descreviam cenas de sexo com certa suavidade, cheias de prazeres desconhecidos até então para a adolescente. Menina mulher.

A bíblia era uma constante em sua vida. Menina desinteressada.

Encontrou-se com a poesia, passava o tempo lendo, decorando e declamando. Menina romântica.

A bíblia vivia em seu encalço, insistindo para ser lida. Menina arredia.

Adiante, conhecera grossos livros de casos verídicos sobre os horrores do holocausto, das “Febens”, dos presídios, das ditaduras. Vivia as dores do mundo como se fossem suas. Menina indignada.

De vez em quando bisbilhotava a bíblia. Menina cética.

Um dia se revoltou com as injustiças do mundo, conheceu autores mal vistos pela igreja. Sua vida se transformara em um turbilhão de dúvidas. Menina atéia.

A bíblia permaneceu num canto, sem deus.

Abdicou de todo tipo de leitura. Menina morta.

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