quinta-feira, 8 de maio de 2014

PELOS TRONCOS DA VIDA

Cemitério. Morada dos que partiram para sempre. Mas é lá que alguns seres vivos escolhem para passear, namorar, transar, refletir, roubar e até fazer uso de narcóticos. Esse era o local preferido de V. Ela curtia aquele ambiente silencioso e isolado para ficar "doida de pedra". Fumava olhando para aquela cidade de mortos como se ela própria fosse parte integrante de lá. Apreciava as flores e por vezes se encantava com um prédio ou outro provido de santos tantos. Às vezes olhava fixamente para um santo grudado a um túmulo, ela que sempre foi cética, e na sua extrema viagem da pedra, imaginava que ele vinha, estendia-lhe a mão e oferecia ajuda. Deixava-se levar pelas ruas da cidade desértica, e percebia que aquele local era seu. Estava condenada àquela condição de fantasma no mundo, em tenra idade. Mesmo quando o alucinógeno lhe proporcionava viagens infindas, era ali que ela acordava. No cemitério da cidade que nasceu. Abrigo. Não via nada de ruim, pois havia plantas e vasos em abundância. Passava longo tempo namorando os vegetais. Louca de pedra.
O traficante também gostava de cemitério. Seu ponto de venda era bem próximo dali. Certo dia, V comprou sua pedra e foi ao cemitério para usar. Aquele dia não queria ficar muito tempo no silêncio. Saiu, e do lado de fora dos muros da cidade dos mortos, deparou-se com uma árvore em cujo tronco sorria para ela uma orquídea grande e colorida. Que mal haveria em levar uma muda? Esticou-se o quanto pode e tentou puxar um pedaço da planta para levar para sua casa. Mas a força que desconhecia nas próprias mãos, trouxe abaixo a orquídea inteira. Teve vergonha de si mesma. Olhou para os lados, ninguém viu. Não poderia abandonar a orquídea na calçada. E pensou que a orquídea não quereria ser abandonada ali. Como se tivesse cometido um homicídio, queria ajuda para ressuscitar a vítima. Voltou então à casa do traficante e pediu-lhe uma sacola plástica grande. Ele, tão cheio de "boa índole", quis saber o que ela faria com a sacola. Certamente passou por sua cabeça que aquela menina louca mataria alguém asfixiado ou carregaria partes de algum corpo que ela acabara de esquartejar. Ficou perplexo ante a resposta da garota. Uma louca de pedra queria uma sacola para carregar uma planta?
V chegou de volta ao local, temerosa de que algo tivesse acontecido à orquídea. Mas lá estava ela, intacta na calçada, aguardando a volta de sua nova dona, que a posicionou cuidadosamente na grande sacola e partiu toda feliz. Quando adentrou o portão de casa, replantou a orquídea, que sorriu em retribuição e disse:
"Que bom que me tirou de lá. Não aguentava mais ver tanta tristeza, de cima da minha morada. Sei que aqui não verei." A menina afastou-se da orquídea, chorou, lamentando sua condição de adicta e pensou consigo: "Até as plantas renascem, por que não eu?". A orquídea, embora não quisesse, viu tristeza na casa de V por meses e finalmente quando a menina se curou, ao acordar, vai até a planta, ambas se olham toda manhã com um olhar cúmplice de quem sabe que o cemitério não as terá por muito tempo.


Baseado em fatos.
Bj em GRACE EVANGELISTA ASSUNÇÃO.

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