Silêncio mortal na biblioteca. O
máximo que se ouve é o ruído rápido de canetas postas na mesa, uma página ou
outra que vira e raros espirros abafados. Nem passos, nem sussurros, nem
arrastar de cadeiras, nem a nona sinfonia de Beethoven. No banheiro, só o som
das torneiras, das urinas, das descargas. Quando saio de um dos compartimentos
do banheiro, ela está lá se olhando no espelho. Com um belo rosto angelical,
sorri para mim pelo reflexo. Não sei se me vê. Olhar apagado no rosto de anjo,
continua a observar-me pelo espelho e sorri novamente quando nossos olhos se
encontram, enquanto lavo as mãos.“Você acredita que algumas pessoas vieram aqui
para cumprir uma missão?” Assusto-me com o diálogo sussurrado que ela inicia. “Talvez.
Não sei. Talvez.” Faço menção de sair. “Leu O Duplo, de Dostoiévski?”. Balanço
a cabeça num sim. Teria feito isso mesmo se não o tivesse lido. Poderia querer
me contar o livro todo. Uma estranha contando-me o que já conheço. “Acha possível
que exista o nosso duplo, o doppelganger?” Balanço a cabeça insinuando um não. “Pois
há. Eu tenho um. Desconcertante isso. Sou perseguida o tempo todo.” Tenciono
sair novamente. Na pia um líquido vermelho escorre. Fujo de olhar para aquilo,
amedrontada. Pelo espelho ela me olha pela última vez. Os olhos mais mortos
agora. Mostra-me os braços com os profundos cortes e antes de escorar na parede
espalhando o sangue pelo chão, me diz, agora mais baixo ainda, num som quase
inaudível: “Eu preciso fazer isso porque ela queria que eu fizesse com todos os
que estão aí dentro.” Senta-se no chão. A cabeça cai para o lado. Então percebo
em sua cintura o metal pesado que carregava para cumprir a missão interrompida
por um estilete.
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