quinta-feira, 24 de abril de 2014

INTERROMPIDA

Silêncio mortal na biblioteca. O máximo que se ouve é o ruído rápido de canetas postas na mesa, uma página ou outra que vira e raros espirros abafados. Nem passos, nem sussurros, nem arrastar de cadeiras, nem a nona sinfonia de Beethoven. No banheiro, só o som das torneiras, das urinas, das descargas. Quando saio de um dos compartimentos do banheiro, ela está lá se olhando no espelho. Com um belo rosto angelical, sorri para mim pelo reflexo. Não sei se me vê. Olhar apagado no rosto de anjo, continua a observar-me pelo espelho e sorri novamente quando nossos olhos se encontram, enquanto lavo as mãos.“Você acredita que algumas pessoas vieram aqui para cumprir uma missão?” Assusto-me com o diálogo sussurrado que ela inicia. “Talvez. Não sei. Talvez.” Faço menção de sair. “Leu O Duplo, de Dostoiévski?”. Balanço a cabeça num sim. Teria feito isso mesmo se não o tivesse lido. Poderia querer me contar o livro todo. Uma estranha contando-me o que já conheço. “Acha possível que exista o nosso duplo, o doppelganger?” Balanço a cabeça insinuando um não. “Pois há. Eu tenho um. Desconcertante isso. Sou perseguida o tempo todo.” Tenciono sair novamente. Na pia um líquido vermelho escorre. Fujo de olhar para aquilo, amedrontada. Pelo espelho ela me olha pela última vez. Os olhos mais mortos agora. Mostra-me os braços com os profundos cortes e antes de escorar na parede espalhando o sangue pelo chão, me diz, agora mais baixo ainda, num som quase inaudível: “Eu preciso fazer isso porque ela queria que eu fizesse com todos os que estão aí dentro.” Senta-se no chão. A cabeça cai para o lado. Então percebo em sua cintura o metal pesado que carregava para cumprir a missão interrompida por um estilete.

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