segunda-feira, 28 de abril de 2014

Fragmentos

No início ela vinha todo ano. Chegava como quem ficara distante tempo demais e que os poucos dias que nos proporcionava o prazer de sua presença não seriam suficientes para receber o perdão pela ausência. Era toda solícita, agradável, complacente, dizia sempre sim. Em um ano ela não veio. Estranhamos. Ela deve voltar no próximo. Entretanto, com o passar do tempo, sua vindas ralearam. A tristeza nos assolou, mas ela sempre respondia que não poderia vir naquele ano, pois havia viajado para outras paragens. E no outro ano. E no ano subsequente. Ela não voltava. Mas sabíamos que voara outros ares, navegara outros rios, surfara outras ondas, escalara outras montanhas, conhecera novos mundos. Ela não voltava. Solicitávamos sua presença. “Você não pensa em nós?” Ela pensava: “Já pensei demais.” Mais alguns anos e ela não voltava. “Estará sofrendo de misantropia?” Não. Ela não estava. Se assim fosse, não iria para outros lugares. Que mal fizemos? Não nos amava mais? Então depois de anos a fio numa espera milenar ela chegou. Abrimos os braços. Ela não. Não tinha os braços. Lançou-nos um olhar ensimesmado. Não falou sim. Não tinha boca. Não falou nada. Mas os olhos desenhados num não. Seria ela? Duvidamos. Ela não se mexeu. Os anos passaram e parecia tão diferente do que era, sobretudo distante, como estivera de fato. Falamos a sua volta, rimos como nos velhos tempos. Ela não falou. Não riu. Não quis sair. Ficamos. Ela não quis comer. Comemos. Ela pôs sua desgastada mochila nas costas com ares de despedida. Sem expressão de alegria, nem tristeza. Sem escárnio, mas sem sentimentalidades. Virou-se. Vimos sua partida calada como estivera o tempo todo. Quando adentramos a casa, havia uma carta sobre a mesa. Todos queriam lê-la. Talvez ali estivesse alguma explicação. Um puxou de um lado, outro e outro de outro e a carta rasgou-se. No chão, o papel tão fragmentado como ela mesma se apresentou a nós. Entre os milhares de pedaços no chão, todos brancos, apenas uma frase com letra muito miúda num pedaço mínimo do papel: “Conheço-me as fronteiras. Quero o resto.”

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