Era
apenas uma criança. Uma menina, como tantas outras, que queria brincar, pular,
subir em árvores, jogar peteca, correr pelos pastos, sentir a liberdade dos
pássaros adonados do céu.
Mas
veio em uma família na qual muitos eram religiosos fanáticos. O Estado Islâmico
ainda não existia. Não havia os ataques terroristas que matavam dezenas. Contudo,
pequenos ataques de insanidade exterminavam a alegria de muitos. Poderíamos
nomear aqueles povos de Estado Cristiânico, fazendo uma rápida analogia.
Tão
antiga quanto a humanidade é a crença de que alguns possuem o elevado poder de
se conectar ao Criador e receber mensagens. Hoje parece ser por meio das redes
sociais, local que os humanos escolheram para fazer seus pedidos a Deus, agradecer
ou se lamuriar... Esperemos que Ele tenha tempo de ler o Facebook.
Quanto à menina, tão cedo passou por uma cena
de pânico familiar horrorosa, proporcionado por um ser “elevadíssimo” na sua
família. Alguém dentre eles se meteu a profeta. Teve uma visão. Melhor seria
ter nascido cego. “Ela vai morrer. Deus virá buscar essa menina.”
Gritos
convulsos, choro de dores interiores nunca antes provadas pela família. Orações
de bom encaminhamento. E a criança chorava sua própria morte. “O que esta lhe
reservaria?”. Olhos de medo. Um pavor que deveria ser proibido na infância.
Fazia-se
mortalha naqueles tempos. Tudo muito rústico. Nada do espetáculo de hoje, em
que se entrega o morto a uma empresa e essa o traz maquiado no caixão. Para os
materializados olhos humanos, bem melhor: ver o morto como o adormecido. O
desejo era de acreditar na profecia de Guimarães Rosa: “A gente não morre. Fica
encantado.”
Mas
não existia encantamento naquela morte prematura, nem na dor de todos, nem na
da criança, nem na do profeta que teve a visão. Era real. Haveria de morrer.
Deus avisou. Sem motivos. O grande Pai não precisa de mote para acionar a
morte.
Entretanto
essa visão não passou de uma demência pela qual todo ser humano fanático corre
o risco de passar algum dia. Nada aconteceu à noite. Todos amanheceram vivos. A
menina, inclusive. E uma outra menina, mais nova. Tudo vivo, mas naquele dia, a
ideia doentia e alienante da religião que a família seguia começou a morrer na
cabeça da criança menor. Essa outra assistiu a tudo. E trouxe flashes daquele
circo de horrores uma vida inteira.
O
tempo parece lento, mas é breve demais. Passa sem que percebamos que o
fanatismo muda de nome e lugar, mas existirá enquanto houver ser humano.
Mais
de trinta anos se passaram e a família novamente se depara com uma situação de
risco daquela criança, que hoje é mulher. A mulher, que na inocente infância
chorou a própria morte, luta mais uma vez contra a maldição. “Não há de ser
nada”, digo. “Nada há de ser. É mais um pesadelo. Algum demente deve ter dito
que ela passaria por esse medo de novo. Vai passar.”
A
profecia doente de tantos anos é a verdade de todo ser humano. Todos passaremos.
Mas agora não.