domingo, 29 de março de 2015

ESTADO "CRISTIÂNICO"


Era apenas uma criança. Uma menina, como tantas outras, que queria brincar, pular, subir em árvores, jogar peteca, correr pelos pastos, sentir a liberdade dos pássaros adonados do céu.
Mas veio em uma família na qual muitos eram religiosos fanáticos. O Estado Islâmico ainda não existia. Não havia os ataques terroristas que matavam dezenas. Contudo, pequenos ataques de insanidade exterminavam a alegria de muitos. Poderíamos nomear aqueles povos de Estado Cristiânico, fazendo uma rápida analogia.
Tão antiga quanto a humanidade é a crença de que alguns possuem o elevado poder de se conectar ao Criador e receber mensagens. Hoje parece ser por meio das redes sociais, local que os humanos escolheram para fazer seus pedidos a Deus, agradecer ou se lamuriar... Esperemos que Ele tenha tempo de ler o Facebook.
 Quanto à menina, tão cedo passou por uma cena de pânico familiar horrorosa, proporcionado por um ser “elevadíssimo” na sua família. Alguém dentre eles se meteu a profeta. Teve uma visão. Melhor seria ter nascido cego. “Ela vai morrer. Deus virá buscar essa menina.”
Gritos convulsos, choro de dores interiores nunca antes provadas pela família. Orações de bom encaminhamento. E a criança chorava sua própria morte. “O que esta lhe reservaria?”. Olhos de medo. Um pavor que deveria ser proibido na infância.
Fazia-se mortalha naqueles tempos. Tudo muito rústico. Nada do espetáculo de hoje, em que se entrega o morto a uma empresa e essa o traz maquiado no caixão. Para os materializados olhos humanos, bem melhor: ver o morto como o adormecido. O desejo era de acreditar na profecia de Guimarães Rosa: “A gente não morre. Fica encantado.”
Mas não existia encantamento naquela morte prematura, nem na dor de todos, nem na da criança, nem na do profeta que teve a visão. Era real. Haveria de morrer. Deus avisou. Sem motivos. O grande Pai não precisa de mote para acionar a morte.
Entretanto essa visão não passou de uma demência pela qual todo ser humano fanático corre o risco de passar algum dia. Nada aconteceu à noite. Todos amanheceram vivos. A menina, inclusive. E uma outra menina, mais nova. Tudo vivo, mas naquele dia, a ideia doentia e alienante da religião que a família seguia começou a morrer na cabeça da criança menor. Essa outra assistiu a tudo. E trouxe flashes daquele circo de horrores uma vida inteira.     
O tempo parece lento, mas é breve demais. Passa sem que percebamos que o fanatismo muda de nome e lugar, mas existirá enquanto houver ser humano.
Mais de trinta anos se passaram e a família novamente se depara com uma situação de risco daquela criança, que hoje é mulher. A mulher, que na inocente infância chorou a própria morte, luta mais uma vez contra a maldição. “Não há de ser nada”, digo. “Nada há de ser. É mais um pesadelo. Algum demente deve ter dito que ela passaria por esse medo de novo. Vai passar.”
A profecia doente de tantos anos é a verdade de todo ser humano. Todos passaremos. Mas agora não.


Nenhum comentário:

Postar um comentário