segunda-feira, 30 de maio de 2016

EXAUSTO - ADÉLIA PRADO

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

SONHOS EM LIVROS

Nada está totalmente puro
Ou totalmente imundo.
Depende o lugar que ocupa.

A vida para um doente terminal é diamante.
Para um suicida, o mal.

O amor para o cético, ópio.
Para o romântico, o belo.

A religião para o crente, tudo.
Para o ateu, um erro.

Mas o livro, um livro...
Um livro pode ser puro? Puro em sua completude?
Para o leitor, um mundo.
Ao analfabeto, utopia. 
Sonhos que nascem a cada página engolida
Por seus ouvidos iletrados.

"As coisas que são 'sujas' num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar -- e vice-versa."  ZIGMUNT BAUMAN (O mal-estar da pós-modernidade p.14)



domingo, 29 de maio de 2016

O ÚLTIMO UNICÓRNIO

Sem luz. Sem sussurros.
Sem um vocábulo que nos ressuscite.
Não pretendo mais ouvir suas poesias.
Os termos elegantes no estado de loucura....

Os cascos do último unicórnio não se ouve mais.


O calabouço trancou-se às nossas costas.

Fomos cunhados em uma matéria que se desgasta.
Na razão dos encarcerados.

Os olhos tristes terão visto assombros.


Ou sombras. 


Ou sobras?


sábado, 28 de maio de 2016

TRISTE QUIMERA

E foi pela saudade
Pelo desejo. Por nada...
Eu quis você de novo.
Como se fosse possível que viesse.
Como se pudesse sentir novamente
Todo ardor furioso de outrora.

Não. Não é possível este regresso.
Nossos caminhos se perderam
Nas estradas de um mundo que não nos abriga.

Ainda assim implorei,
Mas algo nos roubou de nós.

Pude ainda sentir o cheiro dos nossos dias.
Da brisa a tocar os cabelos.
Das noites quentes que nos abraçaram.
Do tempo em que nos engravidamos de sonhos.

Entretanto abortamos
Jogando ao vento as frases ditas.
E então essa quimera absurda sucumbiu
Como nós...

domingo, 15 de maio de 2016

"PERDI ALGUMA COISA QUE ME ERA ESSENCIAL E QUE JÁ NÃO ME É MAIS." - CLARICE LISPECTOR

"_ _ _ _ _ estou procurando, estou procurando.
Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que 
vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi.
Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa
desorganização profunda. Não confio no que me acon-
teceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de 
não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria
chamar desorganização, e teria a segurança de me aven-
turar, porque saberia depois para onde voltar: para a
organização anterior. A isso prefiro chamar desorgani-
zação pois não quero me confirmar no que vivi -- na
confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o
tinha, e sei que não tenho capacidade para outro."
A paixão segundo G.H. (p.15) - Clarice Lispector

sábado, 14 de maio de 2016

A MEDIDA DO ABISMO - VINÍCIUS DE MORAES

Não é o grito 
A medida do abismo? 
Por isso eu grito 
Sempre que cismo 
Sobre tua vida 
Tão louca e errada... 
- Que grito inútil! 
- Que imenso nada!


sábado, 7 de maio de 2016

PRIMEIRA PESSOA

Restam-me o silêncio e você.
O silêncio de uma docilidade pura. Favo intocado.
Algo do qual não se pretende distanciar.
Silêncio ansiado.

Você com este desejo estúpido de cuspir. Cuspa, pois.
Cuspa com toda força de sua espécie. Regurgite.
Não ame, se não sabe. Deixe para os que entendem.
Nenhum poder fará com que distinga o amor do ódio.
E logo pensará estar amando.
Outros seres não menos soturnos surgirão ao seu redor.
Como você, apreenderão o mesmo.
Porque a animalidade humana não se restringe à teoria.
Está viva e solta grunhidos.

E grito. 
Grito em segunda pessoa, porque falar em primeira me dói demais.