Era uma vez uma menina só e estranha. Tão só
que às vezes não tinha sequer sua própria companhia. Mas não estranhava.
Estranha menina. Não era só, porque pessoas não a rodeavam. Era só porque não
gostava de presenças, sobretudo, as humanas. Menina esquisita aquela, carregava
sempre nas mãos um exemplar do livro O Pequeno Príncipe. Olhava o mundo e não o
via. Não o via, não porque ele não existia, mas porque não cabia no tamanho que
ele se fizera. Pensava não estar só porque tinha o livro. Isolava-se frequentemente.
Saía para caminhar pela trilha em uma mata nas proximidades de sua casa só.
Caminhava, caminhava. Ouvia pássaros, folhas caindo, o farfalhar das árvores ao
sabor do vento brando, lagartos que passavam apressados de um lado a outro da
trilha. E caminhava mais e adentrava a mata e fugia do mundo. Gostava de
adentrar lugares em que pés humanos não mais pisavam. O mundo estava ocupado
demais com as máscaras que cada um criou para si.
Certa vez, em uma de suas longas caminhadas
só, deparou-se com uma serpente a atrapalhar-lhe o caminho. Sossegadamente, a
rastejante pôs-se atravessada na trilha. A menina só e estranha parou e
estranhou. Nunca tinha visto uma daquela por ali. Observou-a longamente,
aguardando que saísse do seu caminho. Porém a peçonhenta ficou, sem esboçar
pressa, imóvel. Não fez menção de sair. A menina pensou em voltar. Não voltou.
Pegou um galho para espantar o bicho. Mas teve medo de se aproximar muito. A
cobra continuou estática. A menina fixou o olhar nela. Era grande. Não grande o
bastante para travar uma luta com a menina. Mas tinha veneno. Letal. A menina,
só. Não podia tentar passar. Recebeu o olhar de volta, arrepiou-se, pois
parecia ver-se nos olhos do animal, entretanto aproveitou para iniciar um apelo
gaguejante:
- A senhora me concede a licença de passar?
- Por que eu deveria deixá-la passar?
- Porque quero adentrar a mata.
- Para fazer o quê?
- Para pensar, ouvir os pássaros, as folhas,
o vento, ler meu livro...
A cobra fitou a menina com curiosidade e em
silêncio por alguns minutos. Admitiu para si que a pequena era ousada.
- E pensar, ler, ouvir a natureza longe dos
seus? Por que não volta para o mundo de lá?
- Não gosto. Não consigo ser eu quando estou
com eles.
- E aqui você é?
A menina só pensou por um segundo, ajeitou os
cabelos, timidamente.
- Sim. Sou. Só consigo ser eu mesma quando
estou sozinha.
- Mas agora você não está sozinha. E vocês,
humanos não conseguem ser vocês mesmos, nem quando ficam sós. – argumentou a
cobra.
- Quando só sou eu para mim. Estou só sim.
Você não é gente.
- Mas estou viva. Percebe? Posso me mexer,
rastejo por onde quero. Sou mais livre que você. Mais só. Mas existo. E se
pensa que está sozinha, por que não passa por mim e vai embora?
A menina pensou, pensou.
- Porque se eu passar, você me picará.
- Não picarei. Passe. – e saiu da trilha,
ficando à beira – Palavra de honra, não lhe farei mal. Passe!
- Não confio em você. Todos falam que a sua
raça é traiçoeira. Ouço muito histórias suas.
- Que menina interessante que você é. Não
gosta de estar entre os seus, mas acredita nas palavras deles. Desta maneira
poderá ir em paz. Não será responsável por mim e pela minha solidão, pois não
me cativou.
- Não é isso! Não acredito no que dizem. Mas
tenho medo de você.
- Bem típico da sua espécie, não é? Que raça
que não se pode confiar. Julgam os outros, sem antes conhecer de verdade. Acreditam
em histórias recheadas de sandices que se pregam por milênios. Não suportam um
ao outro, tanto que inventam artimanhas para se falar sem a presença física.
Fingem ser o que não são o tempo todo. Você deve mesmo confiar nos seus. São
iguais.
- Não! – retrucou a menina – Não sou igual
aos outros. Sou muito diferente. Sou só. Sou só até de mim. Mas posso criar um
mundo para mim. Posso ser a princesa do meu mundo, se eu quiser.
- Então você não precisa ter medo de mim,
princesa. Também sou só, embora os humanos me incluam sempre nas histórias do
seu mundo. “É este tempo que tem dedicado a mim que me fará importante” agora.
Pode passar!
- Mas... Mas foi uma igual a você que matou o
Pequeno Príncipe.
- Oh, deuses!!! Novamente aparecem os únicos
seres racionais do planeta terra para culpar quem não pode se defender no mundo
humano. Sentem-se mesmo muito superiores, não é?
- Porque somos, oras. Somos racionais e...
Foi interrompida:
- É mesmo um vício, as historinhas são
recontadas como uma maneira de eximir a culpa humana na vida. Certamente
você também deve acreditar que foi uma da minha espécie que trouxe o pecado ao
mundo, tentando a mulher no paraíso... – e deu um sorriso serpentemente
irônico.
A menina a olhava e refletia. "E não foi?" - pensou. Tentou
balbuciar uma desculpa que não vinha à mente, mas a serpente continuou:
- Cabe lembrá-la de que o Pequeno Príncipe
queria voltar ao seu planeta. Recebeu ajuda. Morreu em corpo para conseguir ir
embora daqui. E se isso a assusta, posso assegurar-lhe que seus semelhantes
matam muito mais uns aos outros todos os dias. Contudo não matam para se
alimentar, ajudar ou se defender apenas, mas por vingança, ódio, inveja,
traição, egoísmo. Eis a grande diferença! – lançou um olhar cansado para a
menina. - Mas lembre-se: “Cada um
que passa em nossa vida, passa
sozinho, mas não vai só nem nos
deixa sós.”. Nenhuma de nós seremos as mesmas
a partir de hoje. Pode passar. Vou-me embora porque não irá
entender nunca. “O essencial é invisível aos olhos.” Você não conseguirá enxergar – e foi rastejando de
mansinho para a mata, deixando a trilha livre - Vá e passarei a aguardá-la para que possamos conversar todos os dias.
A menina estranha e só sentiu-se mais só do
que nunca havia sentido. Temeu que a cobra não voltasse. Foi a única vez que sentiu medo. Medo de ser só e estranha:
- Não vá, por favor, senhora serpente. Fique!
É a primeira vez na vida que não desejo ficar só. Fique e faça-me o favor que
aquela da sua espécie fez ao Pequeno Príncipe...