Dia nenhum. Maria Sicrana, 40, brasileira, escritora, cansada de
guerra, da luta vã com as palavras, com o público que não a entende mais, da
vida desgastada pelos papéis que se juntam a sua frente, cheios de uma escrita
para ninguém. Maria Sicrana precisa de mote. Acorda naquele dia pronta para
perpetrar um crime. Só assim encontraria a vida que há tanto perdera. “Chega o
momento em que a imagem de nossa vida se separa da própria vida, torna-se
independente e, pouco a pouco, começa a nos dominar.”
Dia um. Maria sai de casa cedo, decidida a viver intensamente os
próximos dias. Observa de longe uma lan house. Estaciona a alguns quarteirões.
Vai a pé até o local. Entra no ambiente envolto em leve penumbra, com cheiro
putrefato comum de humanos descuidados de higiene e tomado pela fumaça de
cigarros dos usuários que fumam encostados na porta de entrada. Ela entra
enojada. Solicita uma máquina, senta-se e começa sua busca por alguém que
estivesse disposto a cometer um crime em troca de quantia razoável do vil metal
que guardara em sua carreira agora apagada. Como é de costume dos que não
querem ser reconhecidos, cria um perfil falso numa rede social. Lembra-se de
Antônio, colega de escola que na sua longínqua infância causava medo nos colegas
por ser um grosseiro que cuspia a palavra arma a todos que o olhavam por mais
de alguns segundos. Antônio Fulano era temido por todos do colégio. Mesmo os
professores e inspetores o tratavam com certo receio, tentando não avivar a
fúria que possivelmente vivia naquele corpo grande de menino que estava fora de
sua faixa etária na escola. Maria Sicrana o encontra na rede, envia um convite
e volta para casa. O plano iniciara bem, embora tivesse gasto muito tempo em
busca do homem que precisava. O que planejara, carecia de tempo e paciência. Tinha
tempo. E talvez não possuísse a paciência dos que ajudam necessitados, mas a de
quem quer sair ilesa de um crime sonhado perfeito. Volta satisfeita para casa. Porém,
ansiava pela resposta.
Dia dois. Maria aguarda um dia inteiro para ir só à noite à procura de
outra lan house com o intuito de saber se fora aceita. Solicita uma máquina. As
mãos estão geladas e trêmulas. Quando abre seu perfil está lá. Antônio era
agora seu amigo virtual. Ele estava online. Apresentou-se para ele como Maria
Beltrano, brasileira à procura de amigos. Conversaram longamente. E melhor,
descobriu que ele se casara, mas algo deu errado e abandonou a esposa e filhos.
Perfeito! Antônio vivia sozinho, num bairro de classe baixa da cidade,
trabalhava como ajudante de mecânico numa oficina de pouco nome. Adquiriu a
confiança dele, fazendo-se de boa gente, que poderia ser de fato, quem sabe. Antônio
insistiu em conhecê-la. Ela se esquivou. Não podia. Ela tinha uma proposta para
ele, mas só diria no outro dia. Marcou horário à noite na rede. Saiu da máquina
e foi para casa.
Dia três. Maria adiantou o assunto que a levara a procurar por alguém
anônimo. Não há por que prolongar dores de quem tem o remédio acessível. Disse
que procurava alguém que fosse corajoso o bastante para matar uma mulher e que
pagaria bem. Silêncio do outro lado da rede. Sumiu o homem.
Dia quatro. Maria foi a outra lan house no horário da noite anterior.
Solicitou a máquina. Entrou em seu perfil. Nada de ele aparecer.
Dia cinco. Nenhum Antônio que surgira mais. Ela começou a se irritar. Ficou
horas a fio diante daquele computador depauperado. “Ele vai voltar” – pensou,
tentando acalmar a si mesma. “Dinheiro cheira bem quando a vida nos nega
privilégios. Amanhã quem sabe.” Maria sabia que Antônio sentia-se cansado daquela
miséria de vida: sair da oficina, passar de vez em quando na lan house para
fugir um pouco da dureza do cotidiano, tomar um trago e dormir sozinho no
cômodo puído que dissera viver.
Dia seis. Outra casa de máquinas, ela o viu online:
_ Estava esperando por você.
_ Não vê que minha vida já é por demais seca de
alegrias para trazer-me ainda sangue nas mãos?
_ Você não a conhece, Antônio. Nem a mim conhecerá.
É seguro. Eu não o verei nunca também. Preciso que faça isso por mim, pois se
for eu, desconfiarão. Não lhe custará nada. Ela precisa morrer. Já prejudicou
demais minha vida.
_ Não posso! – foi-se.
Dia sete. Assim que entrou, apareceu em sua tela: “Eu nem tenho
arma...”. Era a hora. Sabia que ele iria cometer o crime. Pediu que voltasse no
outro dia, pois ela diria onde estava a arma que seria usada, um pouco do
dinheiro e identificação da vítima.
Dia oito. Na lan house, falou rapidamente com o assassino,
explicou-lhe que a arma estava ao pé de uma árvore próxima a determinado lugar.
Havia ainda uma foto da vítima e o endereço para ele começar a observá-la de
dia, já que ela não costumava sair com frequência à noite. Levou também um
envelope com boa parte do dinheiro para que ele se convencesse de que, ao
contrário do que dizem por aí, o crime valeria a pena. Havia tanto dinheiro que
ele não resistiria e afinal perceberia que uma vida não vale ser refletida. Saiu
dali, depositou os objetos no local que havia combinado e foi para o carro a
passos largos. Rapidamente, rumou ao endereço deixado para Antônio, e de longe,
embaixo de uma grande árvore com seus braços estendendo a sombra para
protegê-la do olhar dele, ficou à espreita, na certeza de que ele iria ainda
naquela noite observar a casa. Muito tempo depois, viu quando Antônio passou
pela calçada olhando indisfarçadamente, já que estava tudo apagado e não havia movimento
na rua. Não carregava nada nas mãos, provavelmente ele tivesse guardado tudo em
algum local seguro antes de vir, por isso a demora. Suas mãos estavam trêmulas
e suavam. Talvez o assassino também estivesse agora com a mesma sensação. Maria
refletiu sobre a vida. Disse a si mesma que realmente a vida é breve demais,
barata em demasia, e como lera certa vez num livro, “a unidade da humanidade
significa: ninguém pode escapar em lugar nenhum.” Não sabia ao certo se esta sentença
cabia àquela situação, mas achou propícia. Não há como fugir à morte. À vida
sim. Sentiu uma leve tontura ao vê-lo desaparecer na penumbra da noite, para o
outro lado da rua. Lembrou-se de que “[...] a vertigem é a embriaguez causada
pela nossa própria fraqueza.”
Dia nove. Antônio não apareceu online. “Aquele estúpido terá desistido?
Não. Ele vai querer mais dinheiro”. Resolveu passar pela rua da casa da vítima. Quando estava se aproximando, viu que o homem perambulava pela calçada da
casa. “Idiota! Ele deveria estar falando comigo agora...” Passou por ele sem
levantar suspeitas. Estacionou o carro longe. Apagou os faróis. Olhava pelo
retrovisor. Aguardou até que ele desaparecesse na escuridão da noite, tentando
sufocar o tremor que tomou conta do corpo todo. Pensou no livro que lera: “Qualquer
homem é fraco quando se vê diante de uma força superior.” Ele agora se tornara
um deus. Capaz de tirar uma vida quando quisesse. Carregava o metal pesado na
cintura disfarçado pela camisa folgada. Deveria estar confiante.
Dia dez. Ele voltou a ficar online e ela perguntou se já tinha visto a
mulher. Antônio respondeu que não: “Acho que essa pessoa não sai de dia, e à
noite está sempre tudo apagado...”. Maria pediu a ele que se acalmasse e que
não fosse à noite observar, pois os vizinhos poderiam desconfiar. Avisou-lhe
que havia outra quantia do dinheiro em determinado lugar. Despediu-se, saiu
daquele ambiente sombrio com cheiro de mofo e foi deixar o dinheiro no local
combinado. Cuidava para depositar o pacote sempre perto dos lugares em que estava teclando.
Dia onze. O homem começou a ficar ansioso, queria acabar logo com aquilo,
pegar o resto da grana e não voltar a falar com ela: “Não quero ser escravo de
ninguém. Preciso pagar o que devo.”
Dia doze. Finalmente a noite escolhida cuidadosamente por Maria chegara, deu o
aval. “Será amanhã e você não me deverá mais nada.” Pediu a Antônio que pegasse
o pacote com o dinheiro no lugar que ela diria, uma cópia da chave da casa da
mulher, e assegurou que ele poderia entrar e matá-la depois da meia-noite sem
transtornos. Havia silenciador na arma. Não haveria ninguém além da vítima.
Tudo muito seguro. Despediu-se. Agradeceu ao assassino, deixou o envelope e
voltou para casa. Ninguém desconfiaria dela. Rememorou: “É preciso várias vidas
para fazer uma só pessoa.” Morrer é tão natural quanto nascer ou viver. Daria
um bom livro, pensou ela. “Talvez meus leitores gostassem da história. Nem sei
se gostariam. Essas personagens são reais e eles só querem o imaginário, o
ilusório, o fictício. Interessa-lhes somente o que não existe de fato. A
mentira é atraente.”
Dia treze. Lua cheia espreitando a terra. “O destino nos vampiriza,
nos pesa, é como uma bola de ferro amarrada aos nossos tornozelos.” O destino
de Antônio e da vítima estavam pactuados. Nenhum sobreviveria ileso. Antônio
passou pela calçada da residência à meia-noite e meia. Não havia ninguém pelas
redondezas. Com uma luva nas mãos, pôs a chave na porta lentamente e entrou com
todo cuidado para não derrubar nada que pudesse acordar a mulher. A claridade
da lua invadia a casa possibilitando ao matador caminhar sem perigo. Com passos
lentos, mas nervosos passou pela sala, adentrou o corredor que dava direto para
a única porta fechada: “Devia ser o quarto...”. Abriu silenciosamente a porta e
viu na cama a mulher que lhe proporcionara um dinheiro que o tiraria daquele
chiqueiro em que vivia. Apertou o gatilho. Ela gritou: “Antônio”. Assustado,
atirou mais três vezes. Saiu correndo. “Essa maldita sabia meu nome!!!”
Desapareceu sob o olhar indignado da lua, jogou a arma num riacho por onde
passou. Chegou em casa, tomou um largo trago:
“Que vida desgraçada, meu Deus.”
Algumas citações do livro A Arte do Romance de Milan Kundera
Roze querida, o texto me prendeu do começo ao fim. Obrigada por me proporcionar uma leitura instigante e tão real.
ResponderExcluirBeijo grande!!!!
Muito bom!
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