quarta-feira, 5 de março de 2014

Conto: OFFLINE

Dia nenhum. Maria Sicrana, 40, brasileira, escritora, cansada de guerra, da luta vã com as palavras, com o público que não a entende mais, da vida desgastada pelos papéis que se juntam a sua frente, cheios de uma escrita para ninguém. Maria Sicrana precisa de mote. Acorda naquele dia pronta para perpetrar um crime. Só assim encontraria a vida que há tanto perdera. “Chega o momento em que a imagem de nossa vida se separa da própria vida, torna-se independente e, pouco a pouco, começa a nos dominar.”
Dia um. Maria sai de casa cedo, decidida a viver intensamente os próximos dias. Observa de longe uma lan house. Estaciona a alguns quarteirões. Vai a pé até o local. Entra no ambiente envolto em leve penumbra, com cheiro putrefato comum de humanos descuidados de higiene e tomado pela fumaça de cigarros dos usuários que fumam encostados na porta de entrada. Ela entra enojada. Solicita uma máquina, senta-se e começa sua busca por alguém que estivesse disposto a cometer um crime em troca de quantia razoável do vil metal que guardara em sua carreira agora apagada. Como é de costume dos que não querem ser reconhecidos, cria um perfil falso numa rede social. Lembra-se de Antônio, colega de escola que na sua longínqua infância causava medo nos colegas por ser um grosseiro que cuspia a palavra arma a todos que o olhavam por mais de alguns segundos. Antônio Fulano era temido por todos do colégio. Mesmo os professores e inspetores o tratavam com certo receio, tentando não avivar a fúria que possivelmente vivia naquele corpo grande de menino que estava fora de sua faixa etária na escola. Maria Sicrana o encontra na rede, envia um convite e volta para casa. O plano iniciara bem, embora tivesse gasto muito tempo em busca do homem que precisava. O que planejara, carecia de tempo e paciência. Tinha tempo. E talvez não possuísse a paciência dos que ajudam necessitados, mas a de quem quer sair ilesa de um crime sonhado perfeito. Volta satisfeita para casa. Porém, ansiava pela resposta.
Dia dois. Maria aguarda um dia inteiro para ir só à noite à procura de outra lan house com o intuito de saber se fora aceita. Solicita uma máquina. As mãos estão geladas e trêmulas. Quando abre seu perfil está lá. Antônio era agora seu amigo virtual. Ele estava online. Apresentou-se para ele como Maria Beltrano, brasileira à procura de amigos. Conversaram longamente. E melhor, descobriu que ele se casara, mas algo deu errado e abandonou a esposa e filhos. Perfeito! Antônio vivia sozinho, num bairro de classe baixa da cidade, trabalhava como ajudante de mecânico numa oficina de pouco nome. Adquiriu a confiança dele, fazendo-se de boa gente, que poderia ser de fato, quem sabe. Antônio insistiu em conhecê-la. Ela se esquivou. Não podia. Ela tinha uma proposta para ele, mas só diria no outro dia. Marcou horário à noite na rede. Saiu da máquina e foi para casa.
Dia três. Maria adiantou o assunto que a levara a procurar por alguém anônimo. Não há por que prolongar dores de quem tem o remédio acessível. Disse que procurava alguém que fosse corajoso o bastante para matar uma mulher e que pagaria bem. Silêncio do outro lado da rede. Sumiu o homem.
Dia quatro. Maria foi a outra lan house no horário da noite anterior. Solicitou a máquina. Entrou em seu perfil. Nada de ele aparecer.
Dia cinco. Nenhum Antônio que surgira mais. Ela começou a se irritar. Ficou horas a fio diante daquele computador depauperado. “Ele vai voltar” – pensou, tentando acalmar a si mesma. “Dinheiro cheira bem quando a vida nos nega privilégios. Amanhã quem sabe.” Maria sabia que Antônio sentia-se cansado daquela miséria de vida: sair da oficina, passar de vez em quando na lan house para fugir um pouco da dureza do cotidiano, tomar um trago e dormir sozinho no cômodo puído que dissera viver.
Dia seis. Outra casa de máquinas, ela o viu online:
_ Estava esperando por você.
_ Não vê que minha vida já é por demais seca de alegrias para trazer-me ainda sangue nas mãos?
_ Você não a conhece, Antônio. Nem a mim conhecerá. É seguro. Eu não o verei nunca também. Preciso que faça isso por mim, pois se for eu, desconfiarão. Não lhe custará nada. Ela precisa morrer. Já prejudicou demais minha vida.
_ Não posso! – foi-se.
Dia sete. Assim que entrou, apareceu em sua tela: “Eu nem tenho arma...”. Era a hora. Sabia que ele iria cometer o crime. Pediu que voltasse no outro dia, pois ela diria onde estava a arma que seria usada, um pouco do dinheiro e identificação da vítima.
Dia oito. Na lan house, falou rapidamente com o assassino, explicou-lhe que a arma estava ao pé de uma árvore próxima a determinado lugar. Havia ainda uma foto da vítima e o endereço para ele começar a observá-la de dia, já que ela não costumava sair com frequência à noite. Levou também um envelope com boa parte do dinheiro para que ele se convencesse de que, ao contrário do que dizem por aí, o crime valeria a pena. Havia tanto dinheiro que ele não resistiria e afinal perceberia que uma vida não vale ser refletida. Saiu dali, depositou os objetos no local que havia combinado e foi para o carro a passos largos. Rapidamente, rumou ao endereço deixado para Antônio, e de longe, embaixo de uma grande árvore com seus braços estendendo a sombra para protegê-la do olhar dele, ficou à espreita, na certeza de que ele iria ainda naquela noite observar a casa. Muito tempo depois, viu quando Antônio passou pela calçada olhando indisfarçadamente, já que estava tudo apagado e não havia movimento na rua. Não carregava nada nas mãos, provavelmente ele tivesse guardado tudo em algum local seguro antes de vir, por isso a demora. Suas mãos estavam trêmulas e suavam. Talvez o assassino também estivesse agora com a mesma sensação. Maria refletiu sobre a vida. Disse a si mesma que realmente a vida é breve demais, barata em demasia, e como lera certa vez num livro, “a unidade da humanidade significa: ninguém pode escapar em lugar nenhum.” Não sabia ao certo se esta sentença cabia àquela situação, mas achou propícia. Não há como fugir à morte. À vida sim. Sentiu uma leve tontura ao vê-lo desaparecer na penumbra da noite, para o outro lado da rua. Lembrou-se de que “[...] a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza.”
Dia nove. Antônio não apareceu online. “Aquele estúpido terá desistido? Não. Ele vai querer mais dinheiro”. Resolveu passar pela rua da casa da vítima. Quando estava se aproximando, viu que o homem perambulava pela calçada da casa. “Idiota! Ele deveria estar falando comigo agora...” Passou por ele sem levantar suspeitas. Estacionou o carro longe. Apagou os faróis. Olhava pelo retrovisor. Aguardou até que ele desaparecesse na escuridão da noite, tentando sufocar o tremor que tomou conta do corpo todo. Pensou no livro que lera: “Qualquer homem é fraco quando se vê diante de uma força superior.” Ele agora se tornara um deus. Capaz de tirar uma vida quando quisesse. Carregava o metal pesado na cintura disfarçado pela camisa folgada. Deveria estar confiante.
Dia dez. Ele voltou a ficar online e ela perguntou se já tinha visto a mulher. Antônio respondeu que não: “Acho que essa pessoa não sai de dia, e à noite está sempre tudo apagado...”. Maria pediu a ele que se acalmasse e que não fosse à noite observar, pois os vizinhos poderiam desconfiar. Avisou-lhe que havia outra quantia do dinheiro em determinado lugar. Despediu-se, saiu daquele ambiente sombrio com cheiro de mofo e foi deixar o dinheiro no local combinado. Cuidava para depositar o pacote sempre perto dos lugares em que estava teclando.
Dia onze. O homem começou a ficar ansioso, queria acabar logo com aquilo, pegar o resto da grana e não voltar a falar com ela: “Não quero ser escravo de ninguém. Preciso pagar o que devo.”
Dia doze. Finalmente a noite escolhida cuidadosamente por Maria chegara, deu o aval. “Será amanhã e você não me deverá mais nada.” Pediu a Antônio que pegasse o pacote com o dinheiro no lugar que ela diria, uma cópia da chave da casa da mulher, e assegurou que ele poderia entrar e matá-la depois da meia-noite sem transtornos. Havia silenciador na arma. Não haveria ninguém além da vítima. Tudo muito seguro. Despediu-se. Agradeceu ao assassino, deixou o envelope e voltou para casa. Ninguém desconfiaria dela. Rememorou: “É preciso várias vidas para fazer uma só pessoa.” Morrer é tão natural quanto nascer ou viver. Daria um bom livro, pensou ela. “Talvez meus leitores gostassem da história. Nem sei se gostariam. Essas personagens são reais e eles só querem o imaginário, o ilusório, o fictício. Interessa-lhes somente o que não existe de fato. A mentira é atraente.”
Dia treze. Lua cheia espreitando a terra. “O destino nos vampiriza, nos pesa, é como uma bola de ferro amarrada aos nossos tornozelos.” O destino de Antônio e da vítima estavam pactuados. Nenhum sobreviveria ileso. Antônio passou pela calçada da residência à meia-noite e meia. Não havia ninguém pelas redondezas. Com uma luva nas mãos, pôs a chave na porta lentamente e entrou com todo cuidado para não derrubar nada que pudesse acordar a mulher. A claridade da lua invadia a casa possibilitando ao matador caminhar sem perigo. Com passos lentos, mas nervosos passou pela sala, adentrou o corredor que dava direto para a única porta fechada: “Devia ser o quarto...”. Abriu silenciosamente a porta e viu na cama a mulher que lhe proporcionara um dinheiro que o tiraria daquele chiqueiro em que vivia. Apertou o gatilho. Ela gritou: “Antônio”. Assustado, atirou mais três vezes. Saiu correndo. “Essa maldita sabia meu nome!!!” Desapareceu sob o olhar indignado da lua, jogou a arma num riacho por onde passou. Chegou em casa,  tomou um largo trago: “Que vida desgraçada, meu Deus.”



Algumas citações do livro A Arte do Romance de Milan Kundera

2 comentários:

  1. Roze querida, o texto me prendeu do começo ao fim. Obrigada por me proporcionar uma leitura instigante e tão real.

    Beijo grande!!!!

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