segunda-feira, 24 de março de 2014

Conto: A Pequena Princesa



Era uma vez uma menina só e estranha. Tão só que às vezes não tinha sequer sua própria companhia. Mas não estranhava. Estranha menina. Não era só, porque pessoas não a rodeavam. Era só porque não gostava de presenças, sobretudo, as humanas. Menina esquisita aquela, carregava sempre nas mãos um exemplar do livro O Pequeno Príncipe. Olhava o mundo e não o via. Não o via, não porque ele não existia, mas porque não cabia no tamanho que ele se fizera. Pensava não estar só porque tinha o livro. Isolava-se frequentemente. Saía para caminhar pela trilha em uma mata nas proximidades de sua casa só. Caminhava, caminhava. Ouvia pássaros, folhas caindo, o farfalhar das árvores ao sabor do vento brando, lagartos que passavam apressados de um lado a outro da trilha. E caminhava mais e adentrava a mata e fugia do mundo. Gostava de adentrar lugares em que pés humanos não mais pisavam. O mundo estava ocupado demais com as máscaras que cada um criou para si.
Certa vez, em uma de suas longas caminhadas só, deparou-se com uma serpente a atrapalhar-lhe o caminho. Sossegadamente, a rastejante pôs-se atravessada na trilha. A menina só e estranha parou e estranhou. Nunca tinha visto uma daquela por ali. Observou-a longamente, aguardando que saísse do seu caminho. Porém a peçonhenta ficou, sem esboçar pressa, imóvel. Não fez menção de sair. A menina pensou em voltar. Não voltou. Pegou um galho para espantar o bicho. Mas teve medo de se aproximar muito. A cobra continuou estática. A menina fixou o olhar nela. Era grande. Não grande o bastante para travar uma luta com a menina. Mas tinha veneno. Letal. A menina, só. Não podia tentar passar. Recebeu o olhar de volta, arrepiou-se, pois parecia ver-se nos olhos do animal, entretanto aproveitou para iniciar um apelo gaguejante:
- A senhora me concede a licença de passar?
- Por que eu deveria deixá-la passar?
- Porque quero adentrar a mata.
- Para fazer o quê?
- Para pensar, ouvir os pássaros, as folhas, o vento, ler meu livro...
A cobra fitou a menina com curiosidade e em silêncio por alguns minutos. Admitiu para si que a pequena era ousada.
- E pensar, ler, ouvir a natureza longe dos seus? Por que não volta para o mundo de lá?
- Não gosto. Não consigo ser eu quando estou com eles.
- E aqui você é?
A menina só pensou por um segundo, ajeitou os cabelos, timidamente.
- Sim. Sou. Só consigo ser eu mesma quando estou sozinha.
- Mas agora você não está sozinha. E vocês, humanos não conseguem ser vocês mesmos, nem quando ficam sós. – argumentou a cobra.
- Quando só sou eu para mim. Estou só sim. Você não é gente.
- Mas estou viva. Percebe? Posso me mexer, rastejo por onde quero. Sou mais livre que você. Mais só. Mas existo. E se pensa que está sozinha, por que não passa por mim e vai embora?
A menina pensou, pensou.
- Porque se eu passar, você me picará.
- Não picarei. Passe. – e saiu da trilha, ficando à beira – Palavra de honra, não lhe farei mal. Passe!
- Não confio em você. Todos falam que a sua raça é traiçoeira. Ouço muito histórias suas.
- Que menina interessante que você é. Não gosta de estar entre os seus, mas acredita nas palavras deles. Desta maneira poderá ir em paz. Não será responsável por mim e pela minha solidão, pois não me cativou.
- Não é isso! Não acredito no que dizem. Mas tenho medo de você.
- Bem típico da sua espécie, não é? Que raça que não se pode confiar. Julgam os outros, sem antes conhecer de verdade. Acreditam em histórias recheadas de sandices que se pregam por milênios. Não suportam um ao outro, tanto que inventam artimanhas para se falar sem a presença física. Fingem ser o que não são o tempo todo. Você deve mesmo confiar nos seus. São iguais.
- Não! – retrucou a menina – Não sou igual aos outros. Sou muito diferente. Sou só. Sou só até de mim. Mas posso criar um mundo para mim. Posso ser a princesa do meu mundo, se eu quiser.
- Então você não precisa ter medo de mim, princesa. Também sou só, embora os humanos me incluam sempre nas histórias do seu mundo. “É este tempo que tem dedicado a mim que me fará importante” agora. Pode passar!
- Mas... Mas foi uma igual a você que matou o Pequeno Príncipe.
- Oh, deuses!!! Novamente aparecem os únicos seres racionais do planeta terra para culpar quem não pode se defender no mundo humano. Sentem-se mesmo muito superiores, não é?
- Porque somos, oras. Somos racionais e...
Foi interrompida:
- É mesmo um vício, as historinhas são recontadas como uma maneira de eximir a culpa humana na vida. Certamente você também deve acreditar que foi uma da minha espécie que trouxe o pecado ao mundo, tentando a mulher no paraíso... – e deu um sorriso serpentemente irônico.
A menina a olhava e refletia. "E não foi?" - pensou. Tentou balbuciar uma desculpa que não vinha à mente, mas a serpente continuou:
- Cabe lembrá-la de que o Pequeno Príncipe queria voltar ao seu planeta. Recebeu ajuda. Morreu em corpo para conseguir ir embora daqui. E se isso a assusta, posso assegurar-lhe que seus semelhantes matam muito mais uns aos outros todos os dias. Contudo não matam para se alimentar, ajudar ou se defender apenas, mas por vingança, ódio, inveja, traição, egoísmo. Eis a grande diferença! – lançou um olhar cansado para a menina. - Mas lembre-se: “Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas não vai só nem nos deixa sós.”. Nenhuma de nós seremos as mesmas a partir de hoje. Pode passar. Vou-me embora porque não irá entender nunca. “O essencial é invisível aos olhos.” Você não conseguirá enxergar – e foi rastejando de mansinho para a mata, deixando a trilha livre - Vá e passarei a aguardá-la para que possamos conversar todos os dias.
A menina estranha e só sentiu-se mais só do que nunca havia sentido. Temeu que a cobra não voltasse. Foi a única vez que sentiu medo. Medo de ser só e estranha:
- Não vá, por favor, senhora serpente. Fique! É a primeira vez na vida que não desejo ficar só. Fique e faça-me o favor que aquela da sua espécie fez ao Pequeno Príncipe...




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