domingo, 6 de dezembro de 2009

O último beijo



         Era apenas mais um dia comum como todos aqueles em que o balançar lento das folhas de poucas árvores decorando a alameda, anuncia a rotina.
            Menores infratores se aglomeravam numa avenida para surrupiar dos carros que paravam no farol, pequenos objetos de valor que enxergavam através dos vidros, posteriormente quebrados para o delito.
            A mídia estava ali, escondida para flagrar os meliantes em atividade. Havia ainda policiais disfarçados por toda a rua, aguardando para autuar os bandidos-meninos.
Os homens da autoridade se posicionaram pela rua, alguns como passantes, outros como mendigos parados à espreita, próximos ao local. Tudo perfeito como em um filme policial.
            O telejornal então anunciou a notícia. Descreveu a situação, e eu, telespectadora, fitei a TV por um instante para assistir à cena de ação que viria. O repórter falou sobre a forma abjeta com que os fora-da-lei agiam. E as cenas me faziam ver que realmente a história da humanidade vem mostrando como homens e culturas são capazes de deixar marcas indeléveis para a posteridade.
            Vi o garoto se aproximar do carro. Cinema. Olhou fixamente pelo vidro para reconhecer o objeto que dali a pouco lhe pertenceria, para ser vendido por poucos tostões ou mesmo trocado por uma pedra qualquer na próxima esquina.
            De repente um automóvel logo atrás começou a buzinar, como que avisando o condutor da frente, que esse estava em perigo iminente.
            A criança, que vivia do lado de fora da sociedade, se assustou e disparou numa corrida insana pela calçada para fugir de algo que estava acostumado: das “vítimas”.
            Talvez tenha até passado pela cabeça dele, por um segundo, que poderia ser pego se parasse em algum instante, mas não titubeou quando passou por um mendigo sentado no chão, coberto por um pano sujo, encostado a uma parede. Parou, beijou a cabeça do mendigo, segurando-a com as duas mãos, numa rápida demonstração de sensibilidade. Ele não sabia quem era o miserável da rua. Nunca o tinha visto por aquelas bandas.
Aquela cena de afeto talvez tenha chocado até mesmo o homem que estava ali sentado, naquela condição de mais um verme na sociedade, que por ter uma aparência de sujo e feder tanto quanto outros milhões espalhados pelas ruas, atrapalhava os transeuntes.
            O beijo durou um milésimo de segundo. Provavelmente muito menos que isso, porque não houve comentário do repórter sobre o fato. Ninguém mais viu, pois a corrida desenfreada do menino em fuga pela calçada, nublara qualquer outra atitude que o pequeno pudesse ter.
            Então um clarão urgente brilhou naquela escuridão da noite e da cena. O policial saíra debaixo do traje de mendigo, com que estava disfarçado e mirou as costas do marginal.
            O pequeno corpo caíra em câmera lenta sob meus olhos. Filme.
            Missão cumprida. Bandido morto. Aquele seria mais um número na lista da autoridade brasileira. Menos um a oferecer perigo à justa sociedade.
            E o beijo não fora visto pela TV. Não havia ali motivo algum de comentário. Ele era apenas mais um menino de rua marginal e aquele gesto fora nada. Apenas um simples beijo. O último beijo.

Crônica produzida a partir de uma cena mostrada no jornal da TV. 

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